Maria Rita Kehl

Opinião

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Jards

Gosto de pensar que Macalé nunca ficou no porto chorando. Não. Nada de lamentar o eterno movimento dos barcos

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Ele nunca esteve nas paradas de sucesso – Imagem: Leo Aversa
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Eu o ouvi cantar, pela primeira vez, nos anos 1970, graças ao meu namorado na época (hoje grande amigo) Inimá Simões. Não sabia quem era Jards Macalé, que naquela noite cantou sozinho, com excelente acompanhamento de seu violão. Seu assento, no palco, era uma privada (me desculpem se acaso confundo esse primeiro show com algum outro…). “Tirei o chapéu” para tamanha irreverência por parte de um artista ainda pouco conhecido. Mas não penso no gesto de cantar sentado na privada como tentativa de sensacionalismo. A mim, pareceu um convite ao bom humor. Como se dissesse: “Sou cantor, pouca gente me conhece… hoje me apresento aqui, sem pompa nem circunstância”.

Tenho nítida a lembrança daquele homem magro, nem bonito nem feio, de um carisma cool excepcional. Penso em sua voz – ainda hoje, quando o escuto – como uma voz “gorda”, talvez seja mais elegante dizer “voz cheia”, mas ­Macalé não me parece o tipo que se importaria com a elegância. Ou sim? Sua figura magra, seu porte discreto e ao mesmo tempo sedutor, deve ter encantado muita gente além de mim.

O que mais gosto de ouvir, na voz dele, é a versão cantada do Poema da Rosa, de Bertolt Brecht, que muitos dos leitores devem conhecer.

Há uma rosa linda/ plantada em meu jardim/ Dessa rosa cuido eu/ quem cuidará de mim?/ De manhã desabrochou/ de tarde foi escolhida/ pra de noite ser levada/ de presente à minha amiga// Feliz de quem tem uma rosa em seu jardim/ a minha amiga com certeza/ pensa agora só em mim…

Em outra chave, Vapor Barato, em parceria com Wally Salomão, também me encanta: “Oh sim/ eu estou tão cansado/ mas não pra dizer/ que não acredito mais em você/ Com minhas calças vermelhas/ meu casaco de general/ cheio de anéis/ Vou andando por todas as ruas/ e vou tomar aquele velho navio… / Oh minha honey baby/ baby… Oh minha grande/ Oh minha pequena. Oh minha imensa obsessão…”

Quem se interessar, procure essas canções e muitas mais.

Macalé nunca esteve nas paradas de sucesso. Imagino que as tietes nunca tenham se jogado, apaixonadas, em sua direção. Nem ele desejava, imagino, tal prova de “triunfo”. Gosto de imaginar que escolhia seu repertório por gosto, por amizade aos autores e pelo prazer, misturado com um sutil senso de humor, de cantar. Sugiro a quem nunca ouviu sua versão para Movimento dos Barcos (parceria dele com José Carlos Capinam) que procure. É uma canção que já nasceu para se tornar um clássico da MPB. Estou cansado e você também/ vou sair sem abrir a porta/ e não voltar nunca mais/ desculpe a paz/ que eu lhe roubei /… No fim: Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não/ lamentando o eterno movimento/ movimento dos barcos, movimento…

Gosto de pensar que Jards Macalé nunca ficou no porto chorando. Não. Nada de lamentar o eterno movimento dos barcos… Até que a vida o deixou no porto que abriga artistas geniais como ele.  •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jards’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Eu o ouvi cantar, pela primeira vez, nos anos 1970, graças ao meu namorado na época (hoje grande amigo) Inimá Simões. Não sabia quem era Jards Macalé, que naquela noite cantou sozinho, com excelente acompanhamento de seu violão. Seu assento, no palco, era uma privada (me desculpem se acaso confundo esse primeiro show com algum outro…). “Tirei o chapéu” para tamanha irreverência por parte de um artista ainda pouco conhecido. Mas não penso no gesto de cantar sentado na privada como tentativa de sensacionalismo. A mim, pareceu um convite ao bom humor. Como se dissesse: “Sou cantor, pouca gente me conhece… hoje me apresento aqui, sem pompa nem circunstância”.

Tenho nítida a lembrança daquele homem magro, nem bonito nem feio, de um carisma cool excepcional. Penso em sua voz – ainda hoje, quando o escuto – como uma voz “gorda”, talvez seja mais elegante dizer “voz cheia”, mas ­Macalé não me parece o tipo que se importaria com a elegância. Ou sim? Sua figura magra, seu porte discreto e ao mesmo tempo sedutor, deve ter encantado muita gente além de mim.

O que mais gosto de ouvir, na voz dele, é a versão cantada do Poema da Rosa, de Bertolt Brecht, que muitos dos leitores devem conhecer.

Há uma rosa linda/ plantada em meu jardim/ Dessa rosa cuido eu/ quem cuidará de mim?/ De manhã desabrochou/ de tarde foi escolhida/ pra de noite ser levada/ de presente à minha amiga// Feliz de quem tem uma rosa em seu jardim/ a minha amiga com certeza/ pensa agora só em mim…

Em outra chave, Vapor Barato, em parceria com Wally Salomão, também me encanta: “Oh sim/ eu estou tão cansado/ mas não pra dizer/ que não acredito mais em você/ Com minhas calças vermelhas/ meu casaco de general/ cheio de anéis/ Vou andando por todas as ruas/ e vou tomar aquele velho navio… / Oh minha honey baby/ baby… Oh minha grande/ Oh minha pequena. Oh minha imensa obsessão…”

Quem se interessar, procure essas canções e muitas mais.

Macalé nunca esteve nas paradas de sucesso. Imagino que as tietes nunca tenham se jogado, apaixonadas, em sua direção. Nem ele desejava, imagino, tal prova de “triunfo”. Gosto de imaginar que escolhia seu repertório por gosto, por amizade aos autores e pelo prazer, misturado com um sutil senso de humor, de cantar. Sugiro a quem nunca ouviu sua versão para Movimento dos Barcos (parceria dele com José Carlos Capinam) que procure. É uma canção que já nasceu para se tornar um clássico da MPB. Estou cansado e você também/ vou sair sem abrir a porta/ e não voltar nunca mais/ desculpe a paz/ que eu lhe roubei /… No fim: Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não/ lamentando o eterno movimento/ movimento dos barcos, movimento…

Gosto de pensar que Jards Macalé nunca ficou no porto chorando. Não. Nada de lamentar o eterno movimento dos barcos… Até que a vida o deixou no porto que abriga artistas geniais como ele.  •

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