

Opinião
Janeiro de 2027
Quando o novo governo tomar posse, começa a corrida pela sucessão


Lula vai tomar posse em clima de festa popular. É justo. Em última análise, ao povo compete defender a democracia e foi exatamente o que aconteceu na eleição presidencial. Todavia, apesar do júbilo, é impossível ignorar certa sensação de que uma geração política encontra neste governo uma última oportunidade de servir ao País. Nos próximos quatro anos, a direita e a esquerda deverão escolher novas lideranças e todos sabemos como essas escolhas vão marcar a política brasileira dos próximos 20 anos. Por mais injusto que seja, no momento em que o novo governo tomar posse, toda a política estará a pensar no próximo. A política vive de antecipação e adora especular sobre o futuro. Impossível resistir.
A direita tem a escolha mais importante a fazer – e também a mais difícil. De forma simples, trata-se de escolher entre Jair Bolsonaro e a democracia. Devemos esperar que a direita brasileira tenha aprendido a lição: sem apelo ao centro político, perde. Só a moderação e o respeito democrático serão capazes de garantir que o bloco político de direita seja eleitoralmente competitivo. Assim sendo, a escolha deve ser radical. Cortar com Bolsonaro, cortar com os apelos à intervenção militar, cortar com a nostalgia da ditadura e com a pretensão de que só a direita representa os valores do genuíno povo brasileiro, colocando a esquerda, sua adversária, como um não povo que deveria ou se render ou ser banida do País.
No fundo, a escolha não podia ser mais clara: transformar o populismo bolsonarista numa minoria no espaço da direita brasileira. A tarefa, convenhamos, não é fácil. Nada fácil. Principalmente, porque exige um caminho sem ambiguidades. Um caminho sem meio-termo. Metade do caminho não é caminho nenhum. E quem quiser a vida sossegada, para o dizer como disse um poeta português, o melhor é ficar quieto e fugir da batalha. Isso vai exigir luta e coragem e trabalho e desassombro. A tarefa é tão simples como pesada, transformar a direita brasileira numa direita democrática. Se isso for possível (e, sinceramente, não sei se será possível fazê-lo em tão pouco tempo), trata-se de transformar os inimigos de hoje em cordiais adversários de amanhã. Quem o fizer merecerá o respeito de todos, da direita que poderá ambicionar formar um bloco social majoritário e disputar a vitória eleitoral. E da esquerda, que passará a competir eleitoralmente sem medo da violência política. Mais uma vez, a tarefa é digna de respeito – trazer a direita de volta ao espaço democrático.
A empreitada exige novo programa e novo discurso. Mas exige, sobretudo, uma liderança à altura dos tempos. Quem? Não sei, não conheço suficientemente a geografia partidária da direita para fazer apostas que mereçam crédito. Mas sei que Simone Tebet ganhou as suas esporas nestas eleições. Sei que lutou para ser candidata e conseguiu, que lutou por se afirmar eleitoralmente num contexto político muito difícil e que conquistou um inesperado e promissor terceiro lugar. E, talvez mais importante, sem temer o que viria a seguir, decidiu-se imediatamente pelo apoio incondicional a Lula, o que significou uma ruptura total com Bolsonaro, com o bolsonarismo e com tudo aquilo que este representa. Nestas eleições, Simone Tebet mostrou que sabe lutar e que sabe enfrentar, e saber enfrentar, mais do que conceder, é um ponto importante do ethos do personagem político. O espaço que ela ocupa na política brasileira não lhe foi oferecido, mas conquistado. O mínimo que podemos dizer é que é preciso contar com ela na batalha pela liderança da direita. Vamos ver, vai ser lindo de seguir.
É DA NATUREZA DA POLÍTICA. ELA VIVE DA ANTECIPAÇÃO E DA ESPECULAÇÃO
Depois, a esquerda. Este é o primeiro governo de esquerda que começa sem um candidato óbvio em futuras eleições. Assim sendo, no momento em que toma posse o novo governo, começa também a batalha pela sucessão. É a vida. Pode objetar-se que também não havia candidato quando Lula foi presidente pela segunda vez, no segundo mandato. Sim, é verdade, mas desta vez muita gente esperava que ele fosse de novo candidato com qualquer revisão constitucional (que, felizmente, não existiu) ou que escolhesse o sucessor. Agora, desta vez, acho que nenhuma das duas situações vai acontecer. Nem se candidatará de novo nem escolherá sucessor. A sua entrada na história, para citar um clássico da política brasileira, exige um certo afastamento dessas decisões.
E não havendo sucessor óbvio, a batalha da liderança da esquerda começa no primeiro momento em que começa o governo. E o governo é uma boa oportunidade para resolver problemas de liderança. Em primeiro lugar, estar no governo permite uma justa e leal disputa pela sucessão baseada nas capacidades que os diferentes candidatos mostrarem no exercício das funções. Em segundo lugar, estar no governo permite manter um nível de unidade interna que é mais difícil na oposição. O exercício do poder convida à responsabilidade. Mas a primeira vantagem é a mais importante – estar no governo permite escolher a liderança com base na competência executiva e ser um bom governante é condição para ser um bom candidato, característica que nem sempre a esquerda valoriza como devia.
Sem a caneta e sem a exposição do cargo, Bolsonaro tem futuro político incerto. Mito “morto”, mito posto? – Imagem: Alan Santos/PR
Quanto aos nomes, o exercício de antecipação é ainda temerário, mas nem por isso menos interessante. Não há dúvida de que quatro anos na política brasileira soam a eternidade. Julgo, no entanto, que não arrisco nada se disser que há hoje três nomes indiscutíveis que figurarão na grelha de partida: Fernando Haddad, Flávio Dino e Guilherme Boulos. Haddad tem do seu lado a legitimidade da anterior eleição presidencial e a dignidade com que travou batalha tão desigual. Tem também do seu lado a oportunidade de conduzir bem as finanças do País no cargo que agora vai ocupar, o que constituirá um ativo importante para o futuro. Flávio Dino tem uma longa carreira política em cargos parlamentares e executivos. Foi senador e governador, o que faz dele um político experimentado. Sua cultura política e a segurança com que se exprime o transformam num valor seguro da política brasileira. Finalmente, é preciso falar de Boulos, que, no momento em que escrevo, não sabemos ainda se corre por dentro ou por fora do governo, só me parece certo que correrá, visto que tem coragem de sobra para não virar a cara a nenhuma disputa política. Tem do seu lado algumas caraterísticas que fazem dele um dos nomes mais promissores da esquerda brasileira – é jovem, é popular e tem uma extraordinária história de vida. Se não estiver no governo, exercerá com brilho o seu lugar de deputado federal por São Paulo, o mais votado na eleição. Claro que tudo pode mudar e que surpresas surgirão. Todavia, estes são os três nomes que ocupam a linha de partida. O único voto que podemos fazer é desejar que a disputa seja leal e que conduza, no fim, à unidade política que foi um dos grandes fatores do sucesso eleitoral da esquerda nos últimos anos. Estar no governo é uma vantagem para resolver crises de sucessão. A partir da oposição é mais difícil.
A esquerda procurará uma nova liderança, mas será, talvez, justo dizer que sua tarefa política é mais simples, porque não se trata de mudar radicalmente o seu programa ou o seu discurso, mas de dar continuidade ao esforço reformista que anima o atual governo. Reformas de crescimento, reformas de distribuição de renda, reformas de igualdade. No fundo, poderemos dizer assim: a tarefa da esquerda é dar continuidade ao esforço de criar um Estado de desenvolvimento e um Estado social. E de uma vez por todas acabar com a ideia de que a liberdade é apenas uma condição para a segurança das operações financeiras.
AS LIBERDADES POLÍTICAS, AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS INDIVIDUAIS, NÃO SÃO LIBERDADES BURGUESAS, SÃO PRINCÍPIOS FUNDADORES DO ESTADO DE DIREITO
Quando me perguntam qual é o princípio político que considero mais importante, costumo responder de forma negativa. Não acredito que qualquer fim social, por mais nobre que seja, possa ser alcançado com sacrifício da liberdade individual. Dito de forma talvez mais concreta, não acredito no sacrifício das garantias constitucionais modernas em nome de finalidades coletivas. No meu ponto de vista, que resulta também da minha experiência de vida, nada de bom pode ser conseguido para a sociedade se não mantivermos esse mínimo de autonomia que faz de nós soberanos únicos de um espaço, limitado, é certo, mas indispensável à nossa afirmação como indivíduos dotados de razão.
Nesse sentido, entristece-me profundamente ver largos setores da esquerda confundirem, propositadamente, o liberalismo clássico do século XVIII com o que se convencionou chamar de neoliberalismo. Não, não são a mesma coisa. O primeiro nasceu como pensamento revolucionário contra o privilégio e pela igualdade. O segundo afirmou-se como movimento reacionário contra o Estado de Bem-Estar Social e contra o chamado “perigo do comunismo”. O primeiro é filho da Revolução Francesa, o segundo é produto da Guerra Fria e da reação política contra a intervenção estatal na distribuição de recursos. Não são apenas épocas históricas diferentes, são coisas diferentes. Coisas diferentes que a esquerda não devia confundir. Em síntese, o que quero dizer neste momento em que a esquerda regressa ao poder é que as liberdades políticas, as garantias constitucionais individuais, não são liberdades burguesas, são princípios fundadores do Estado de Direito. Quando nos tiram os direitos individuais, nada mais é garantido. Alguém disse, com graça, que a esquerda não perde a oportunidade de perder uma oportunidade. Espero que não perca esta. Feliz ano-novo, Brasil. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Janeiro de 2027”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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