Jair Bolsonaro perpetua opressões com sua retórica destrutiva

As palavras ultrapassarão sempre o seu estado de dicionário

(Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

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O que dizemos, o como dizemos, e para quem dizemos nos revela: quem somos, o que pensamos, o mundo no qual vivemos, nossos conceitos e preconceitos. E o discurso é per se agente de transformação social e de perpetuação de opressões.

A esta altura, suponho que todos nós já estejamos habituados ao conta-gotas destrutivo do Bolsonaro e de seu governo. Cada dia nos reserva sua cota de indignação e horror. Do baú de sandices do Bolsonaro pode sair qualquer coisa e nada indica que ele pretenda poupar munição ou diminuir a toxidade. Uma crise depois da outra, causadas tanto por assuntos tolos, quanto por questões cruciais; por falas discriminatórias, ou por simples piadas infames, mas reveladoras. É forçoso admitir: antes que tudo esse governo é uma fábrica de crises.

Tudo fica mais difícil numa semana como a que se passou, quando, num intervalo de dois dias, o presidente conseguiu ofender nordestinos, mulheres, governadores eleitos, o diretor do Inpe, cineastas, um general, a jornalista Miriam Leitão… É um rolo compressor de asneiras, de alguém que evidentemente não compreende e nem dá a mínima para o poder da palavra.

O meu caminho se cruzou com o do Bolsonaro quando resolvi reunir em vídeo algumas pérolas inaceitáveis do então pré-candidato à presidência. Havia um vasto material à disposição, isto desde o final dos anos 90. Numa das entrevistas mais controversas dele, concedida ainda durante o governo FHC, o deputado federal Jair Bolsonaro defendeu a tortura, o assassinato de opositores políticos, uma guerra civil na qual morreriam inocentes (“em toda guerra morrem inocentes”, disse Bolsonaro sem qualquer demonstração de suscetibilidade ou mesmo humanidade) e ele também aproveitou para afirmar que, se fosse eleito presidente, fecharia o Congresso no mesmo dia, vez que o Parlamento não servia para nada. “Pra nada!”, enfatizou.

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Bem, estas afirmações já deveriam ser o suficiente para que ele nunca mais ocupasse qualquer cargo eletivo na vida, alguém com uma retórica diametralmente oposta à democracia e ao Estado de direito. Aliás, é lícito supor que, em certos países, alguém com este tipo de retórica poderia acabar na cadeia por atentar contra as instituições e instigar a violência e subversão da ordem pública.

Mas, como sabemos, nada disto aconteceu. Bolsonaro se reelegeu várias outras vezes depois e, hoje, é o presidente do Brasil. Sim, democraticamente, a população brasileira elegeu uma figura antidemocrática.

É óbvio que, para isto, ele teve de abrandar ligeiramente o discurso, mesmo sem termos certeza se as convicções da entrevista acima haviam mudado. Aliás, este é o nosso temor, que o mesmo Bolsonaro 1999 subsista pleno no interior do Bolsonaro 2019, principalmente porque, vez ou outra, estas tendências autoritárias e antidemocráticas terminam por transparecer de maneira inequívoca nas falas públicas dele.

O maior problema, e foi o que descobri ao compilar tais “pérolas” do Bolsonaro, é que uma crescente parcela de brasileiros também pensa como ele, que já não confia mais nas instituições democráticas e está disposta a abrir mão de liberdades tão duramente conquistadas para seguir um governante populista e despreparado. Ante o medo, o homem procura um monstro que o defenda, disse Mia Couto.

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As palavras não são meras palavras também em função de seu enunciador, e quando brotam da boca do presidente do Brasil frases ofensivas que reforçam estereótipos, que ofendem, que demonizam, que segregam e que, em última instância, potencializam e legitimam a violência contra determinados grupos, então podemos ter certeza que, na encruzilhada da História, em algum momento, como Dante, perdemos “la diritta via”, e parece estarmos mesmo afundando no inferno.

Quantas feras guardam esse caminho? Será que ainda há tempo para dar meia-volta e encontrarmos trilha mais benfazeja?

Ou o labirinto infernal é sem volta e só no final dele encontraremos purgatório e, finalmente, a luz?

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