

Opinião
Jair Bolsonaro e os herdeiros do general linha-dura Sylvio Frota
Para Frota, Geisel era quase um comunista. Acabou exonerado pelo presidente militar em 1977


No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx citou a famosa frase de Hegel de que a história se repete e acrescentou: “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. E eis que o governo Bolsonaro, com seus arroubos e personagens grotescos, nos faz lembrar de um trágico período, nem tão distante, que parece ser a matéria-prima do enredo farsesco imposto ao Brasil de 2019.
Falemos do general Sylvio Frota, morto em 1996. Oficial graduado, foi ministro do Exército do ditador Ernesto Geisel, entre 1974 e 1977, quando o regime anunciava a transição “lenta, gradual e segura”. Frota talvez tenha sido o maior opositor da abertura democrática, que considerava uma traição ao “processo revolucionário”. Anticomunista, elaborou a famosa lista dos 97 “subversivos infiltrados no Estado” e passou a minar Geisel, a quem pretendia suceder e que considerava ideologicamente de esquerda.
Sim, para Frota, Geisel era quase um comunista. Foi exonerado pelo presidente em 12 de outubro de 1977, não sem tentar uma conspiração golpista – um golpe dentro do golpe – no mesmo dia. Fracassou. Os generais que tentou convocar para o levante haviam sido chamados por Geisel ao Palácio do Planalto. Escreveu então um manifesto público, no qual resume suas crenças sobre o Brasil. Possivelmente passou despercebido que um dos exonerados daquele dia tenha sido um certo capitão Augusto Heleno, nada menos que ajudante de ordens do ministro.
Ao reler o manifesto do general, parece que estou diante do programa do atual governo brasileiro. O texto faz uma defesa do um alinhamento servil com os Estados Unidos e ataca Geisel pela aproximação com a China e por críticas a Israel. Seria, no entender de Frota, provas de uma “escalada socialista”. Ultraliberal na economia, ele ataca o papel desenvolvimentista do Estado naquele momento e sua presença reguladora. Profundamente autoritário na política, reclama da permissividade com as críticas da mídia às Forças Armadas, (“propaganda subversiva”, define).
Após o fim do “milagre econômico” e a derrota nas eleições parlamentares de 1974, a ditadura estava em crise. A posição de Frota e sua turma era dobrar a aposta, reagindo aos questionamentos sociais com ainda mais repressão. Essa linha de pensamento produziu o atentado do Riocentro, uma tentativa de criar um falso pretexto para justificar o endurecimento, tática bem comum entre certos setores militares. Frota opôs-se à Lei da Anistia e seu grupo nunca aceitou a transição democrática e a Constituição de 1988.
Augusto Heleno, atual ministro do GSI, fazia parte da patota. Bolsonaro, embora arraia-miúda, expressou justamente esse pensamento durante toda a sua medíocre carreira política. De algum modo, mesmo que por vias tortuosas, os herdeiros de Frota chegaram ao Planalto 40 anos depois. É fato que não representam as Forças Armadas brasileiras como um todo, mas sua pior tradição, autoritária e entreguista: aqueles que falam grosso com o povo brasileiro e fino com as autoridades americanas.
Se Bolsonaro tem alguma linhagem política é a de Sylvio Frota. E entender isso pode lançar luzes sobre sua estratégia em meio ao caos aparente de seu desgoverno. Quando ele ataca a mídia e ameaça jornalistas, não é apenas um excesso. Quando estoura a corda com o Congresso e o Judiciário, não é um sinal de despreparo. Quando persegue opositores, minimiza o assassinato de indígenas ou exalta a tortura, não joga somente para a plateia. Esse é o núcleo central da sua política. A mesma receita que Frota propunha para a crise da ditadura – saída autoritária, com maior fechamento do regime – é a que Bolsonaro, num outro contexto, propõe para a crise da Nova República.
Depois de sete meses não restam dúvidas de que, se tiver oportunidade, Bolsonaro não hesitará em destruir o que restou da combalida democracia brasileira. Hoje não tem força nem apoio suficiente para tanto. Mas tem testado progressivamente a reação da sociedade e das instituições. Faz o que a linguagem militar chama de “aproximações sucessivas”. Se a sua estratégia entrará para a história como farsa ou uma nova tragédia, dependerá da capacidade de resistência da sociedade.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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