

Opinião
Itália serve como advertência sobre a catástrofe do conluio criminalidade-política
Isso é visto também em Israel, onde Benjamin Netanyahu, em vias de ser definitivamente julgado, para escapar da sentença, perpetra um genocídio


“Quando um velho morre, é uma biblioteca que se queima” – Provérbio africano
As reflexões sobre as últimas eleições municipais não param. Exercício saudável, cuja principal virtude é estimular, animar o diálogo.
Dialogar é antídoto para a intolerância preconizada pela extrema-direita; é revolucionário, como o pernambucano Paulo Freire bem percebera.
Utilizando essa métrica, é forçoso concluir que a criminalidade representa o reverso da civilidade, da convivência pacífica, do diálogo.
Portanto, cabe inquirir em que medida a criminalidade determina a orientação da democrcia e a prática do voto.
Por que o governador de São Paulo incorreu em crime, na véspera da votação, acusando – de maneira falsa, irresponsável e sem provas – o candidato Guilherme Boulos de estar mancomunado com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital?
Como notaria minha avó, quem usa, sempre cuida… Simples assim.
Além disso, o racismo institucional impede que se olhe de forma mais acurada o voto branco (não apenas aquele em branco ou nulo), pois tendemos a confinar a criminalidade às periferias, o que, evidentemente, é um erro (e apenas o racismo estrutural vigente pode explicar o porquê se incorre nele).
Com efeito, é notória a presença do PCC em Santa Catarina, queimando ônibus e tocando o terror tanto no interior (Tijucas), quanto na própria capital, Florianópolis. Dessa forma, cumpre instruções da cúpula do PCC, que as envia do interior de São Paulo.
No entanto, a ausência do desgovernador de SC da reunião convocada pelo presidente Lula com os governadores para tratar do novo plano de segurança pública para o País, na semana passada, foi associada apenas à divergência ideológica.
Coincidências existem, mas indícios também podem ser indicações.
Nesse sentido, a Itália tenha muito a ensinar quanto às relações entre política e crime organizado.
Em Dom Vito (editora Feltrinelli), biografia do político mafioso Vito Ciancimino escrita por seu filho, Massimo, e Francesco La Licata, busca-se elucidar aquela relação estreita e perigosa, que conduziu a Península ao abismo da extrema-direita, por duas vezes:
“…a Primeira República, devastada pela ação concêntrica das investigações sobre a corrupção ao Norte e sobre a máfia política ao Sul. Uma deflagração quase contemporânea, produzida por dois deflagradores potentíssimos: em Milão, os processos conduzidos por Antonio Di Pietro; ao Sul, o início da estação de sangue com o assassinato de Salvo Lima, o pró-cônsul de Andreotti [chefe da Democracia-Cristã e oito vezes primeiro-ministro da Itália] na Sicília”.
Os autores esclarecem que, com o assassinato de Lima, seu pai compreende: “Aproxima-se um acerto de contas e nada será como antes, porque estão mudando as regras do jogo e a máfia não tem mais intenção de depender dos tempos e dos bizantinismos da política”.
A situação limite da Itália deve servir-nos como advertência de como o conluio entre criminalidade e política pode ser catastrófico, no limite da possibilidade de retorno.
Isso é visto também em Israel, em que um criminoso comum, Benjamin Netanyahu, réu em vias de ser definitivamente julgado, para escapar da sentença, perpetra um genocídio, regional.
Pior, tal a sanha sanguinária do ladrão de joias (não os temos apenas aqui), que resolve impedir que a agência humanitária da ONU, a UNRWA, possa prestar a assistência mais mínima à população civil palestina, por ele massacrada.
Em resposta a ONU e a comunidade internacional que a compõe fizeram…literalmente… nada.
Na obra Não matem o futuro dos jovens (editora Dalai), Don Andrea Gallo, a propósito dos variados riscos que enfrenta a democracia, cita artigo do jornalista Mino Fucillo:
“A democracia cansa…e as pessoas estão prontas a colocá-la na banca da feira, a vendê-la por qualquer preço. A democracia cansa, duas vezes. Cansa porque não consegue mais lutar contra forças enormemente maiores, velozes e potentes: a acumulação financeira é oito vezes maior do que do que a riqueza produzida no mundo. A democracia não controla mais os mercados financeiros, com muita dificuldade consegue agarrar-se a eles…Mas o mundo ocidental não lhe corre em socorro, para proteger a casa da democracia; ao contrário, derruba seus muros e até as fundações.”
Buscar relacionar e raciocinar parece ser o desafio que a democracia deverá enfrentar neste início de século XXI.
Isso deverá valer tanto para as relações interpessoais, quanto coletivas e até internacionais.
Como quer o Papa Francisco, estejamos em saída.
Salienta Anselm Grün, em Viver com saúde de corpo e alma (editora Vozes):
“A anorexia e o transtorno de personalidade limítrofe são exemplos de doenças nervosas em que a pessoa vive fixada em si mesma…Na anorexia, segundo a interpretação da psicologia, eu me nego o envolvimento. Nela, eu tento controlar a minha vida, ao invés de me doar à vida e às pessoas…No entanto, quanto mais ele pretende controlar tudo racionalmente, tanto mais perde o controle da sua vida. O controle é a morte de todo relacionamento. Sem relacionar-se…sentimo-nos mortos. E assim se instaura um círculo vicioso de controle e petrificação.”
E conclui: “O sagrado é, para os gregos, aquilo que foi tomado do mundo. Os gregos estão convencidos: apenas o sagrado é capaz de curar…Nossa alma sabe no fundo o que lhe faz bem. Mas com frequência ela precisa de uma palavra externa para acreditar naquilo que internamente ela sabe.”
Sejamos a palavra que se faz ação, para todos e cada um de nós.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Ministério da Saúde de Gaza relata bombardeio israelense contra hospital no norte
Por AFP
Israel cancela oficialmente cooperação com agência da ONU para os refugiados palestinos
Por AFP
Ministério da Saúde libanês anuncia pelo menos três mortos em bombardeio israelense
Por AFP