Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Israel e a encarnação do colonialismo clássico

Ironicamente, Israel abraça a tradição colonial ao impor ao povo palestino o destino que o centro do capitalismo impôs à sua periferia

Foto: Jack Guez/AFP
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Entre agosto e setembro de 2001 a ONU promoveu a Conferência de Durban, conhecida como Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. Na ocasião, três mil organizações não-governamentais de todo o mundo condenaram Israel pelo tratamento colonialista dado aos palestinos, submetidos a uma feroz ocupação de seu território.

Apesar disso, as ações concretas contra o estado colonial de Israel foram minadas por iniciativa dos EUA e da União Europeia, fazendo com que o documento final da conferência perdesse força. Como bem observou o filósofo Domenico Losurdo, a Conferência de Durban teve o trunfo de fazer o Ocidente capitalista e imperialista se ver no banco dos réus, exposto diante de sua história marcada por recalques e ocultamentos de episódios como o tráfico de escravos negros e o martírio do povo palestino.

“A fuga indecorosa das delegações estadunidense e israelense selou o ulterior isolamento daqueles que hoje são os responsáveis por crimes horríveis contra a humanidade e os piores inimigos dos direitos humanos”, escreveu Losurdo, citando Fichte e sua ironia quanto às acusações dos “excessos” da Revolução Francesa por pessoas que, seguras e confortáveis, pretendiam pregar lições de moral aos “escravos enfurecidos” que enfim decidiram tirar dos ombros a opressão que sofriam.

Em 1948, quando Israel foi criado, mais de 700 mil árabes foram expulsos de sua terra. A tensão era inevitável. O capitão Thomas Lawrence, conhecido como Lawrence da Arábia, foi contra a criação do Estado judaico, pois, naturalmente, os árabes iriam resistir. Além dele, o embaixador George F. Kennan, autor da doutrina de containment da União Soviética, também foi contrário à criação de Israel, uma vez que apoiar os “objetivos extremos do sionismo” poderia colocar em risco a segurança dos EUA.

Especialistas estadunidenses, quase sem exceção, foram contra a criação do Estado judeu, explica Luiz Alberto Moniz Bandeira em A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. O oportunismo eleitoral, entretanto, fez com que Truman, candidato à reeleição e de olho nos votos dos judeus, apoiasse o surgimento de Israel, com forte amparo na sensibilidade internacional despertada pelo holocausto.

Essas circunstâncias deram força à ideia profundamente anti-iluminista de que, em pleno século XX, não haveria problema no surgimento de um Estado baseado em vínculos étnicos e religiosos, com fortes características teocráticas. O indefensável, uma vez aprovado, trouxe na bagagem o tratamento colonial e racista dispensado aos palestinos, acossados, espoliados, deportados, presos, violentados e mortos como sem fossem moscas.

A dinâmica colonial parte do pressuposto de que há povos inferiores, suscetíveis à submissão e exploração por outros povos. A desumanização é ponto central para entender o colonialismo e o imperialismo, fases superiores da acumulação capitalista, onde, para manterem o ciclo de reprodução do capital, as potências centrais expandem seu espaço vital, controlando política e economicamente outras regiões, historicamente as do Sul global ou da periferia do planeta.

Nesse contexto, negros, asiáticos e indígenas – e até brancos, no caso dos irlandeses – são desumanizados, o que legitima sua escravização e a exploração de suas riquezas naturais. O nazismo, expressão dessa tradição colonial, referia-se aos povos eslavos como “índios da Europa”, escancarando as pretensões de emular a colonização inglesa na Índia e a expansão para o oeste dos EUA, às custas do genocídio, deportação e escravização dos peles-vermelhas. 

Ironicamente, Israel abraça a tradição colonial ao impor ao povo palestino o destino que o centro do capitalismo impôs à sua periferia. “Estamos combatendo contra animais”, afirmou Yoav Gallant, ministro da Defesa de Tel Aviv, para justificar o cerco a Gaza – o mesmo pressuposto racista que vitimou não apenas milhões de judeus, mas outros milhões de povos periféricos nos séculos anteriores.

Na declaração final da Conferência de Durban, consta o reconhecimento de que “o colonialismo levou ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância correlata, e que os Africanos e afrodescendentes, os povos de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam a ser vítimas de suas consequências”. A declaração reconhece também que o apartheid e o genocídio, nos termos do direito internacional, constituem crimes de lesa-humanidade e estão entre as maiores manifestações de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância.

Por maiores que sejam as ressalvas quanto à natureza do Hamas, é inegável que o cerco sofrido pelos palestinos há décadas, submetidos a uma verdadeira limpeza étnica, lhes confere o direito de autodefesa, extensão do direito à autodeterminação reconhecido também pelas Nações Unidas. Ou é isso ou defender que aceitem com docilidade que Israel mantenha, sem qualquer constrangimento, a maior prisão a céu aberto do mundo, qual seja, a Faixa de Gaza. Chamar, pura e simplesmente, as reações palestinas de terroristas, equiparando-as às ações de Israel e seu suporte econômico e militar por parte dos EUA e da União Europeia, é reconhecer que o crime compensa, legitimando o bombardeio contra civis e a prática de outros crimes de guerra.

Ao fim e ao cabo, tanto o discurso que equipara a reação do oprimido à violência do opressor quanto o que abraça sem restrições as versões de Israel demonstram que canetadas da ONU não são – e jamais serão – suficientes para pôr uma pedra definitiva no colonialismo e no imperialismo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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