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Intervencionismo e mercado

Custa crer que alguns economistas desconheçam que os governos não se limitam a uma escolha binária entre laissez-faire e planejamento

Intervencionismo e mercado
Intervencionismo e mercado
As bandas de resultado primário foram projetadas para dar conta das flutuações cíclicas da economia - Imagem: Cris Faga/NurPhoto/AFP
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Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega desdobrou argumentos para condenar o “intervencionismo” do Estado nos domínios e espaços reservados à sabedoria infinita do Deus Mercado.

Vamos recuperar um trecho pousado nos ouropéis do nosso ex-ministro:

“O retorno a ideias antiquadas se expressou no questionamento do teto de gastos (“uma ideia estúpida”), no ataque à independência formal do Banco Central (“uma bobagem”), na sugestão de elevar a meta de inflação (“como nos 4,5% do nosso tempo”) e na condenação da taxa Selic de 13,75% (“sem qualquer justificativa”)”.

Talvez fosse de bom alvedrio recorrer às análises recentes do FMI a respeito das conveniências e inconveniências do ajuste fiscal que seria patrocinado pelo Teto de Gastos. Escrevi “seria patrocinado” porque, sabem os leitores, os defensores do Teto foram os primeiros a promover seu reiterado arrombamento.

Na edição de outubro de 2014, o ­World Economic Outlook, fugindo dos modelos Mickey Mouse, avalia os benefícios do investimento público em uma conjuntura de baixo crescimento nos países centrais e deficiências na infraestrutura dos emergentes.

No seu segundo capítulo, a publicação semestral do Fundo Monetário Internacional cuida do investimento público como indutor da demanda agregada e de seu papel na irradiação de expectativas favoráveis à formação bruta de capital fixo no setor privado.

O estudo do FMI procura demonstrar que o aumento do investimento público afeta a economia de duas maneiras. “No curto prazo, impulsiona a demanda agregada mediante a operação do ‘multiplicador fiscal’, incitando o investimento privado (crowding in), dada a forte complementaridade ensejada pelo investimento em serviços de infraestrutura… No longo prazo há um efeito sobre a oferta, na medida em que a capacidade produtiva se eleva com a construção do novo estoque de capital.”

O texto prossegue em sua avaliação das consequências do investimento público sobre o produto potencial. Afirma que o gasto autônomo do Estado em uma economia com capacidade ociosa ou carência de infraestrutura pode determinar a evolução favorável da relação dívida/PIB no médio e no longo prazo.

Dependendo do “multiplicador fiscal” de curto prazo, da eficiência microeconômica dos projetos e da “elasticidade do produto”, o novo investimento pode levar a uma queda da relação dívida/PIB. O leitor atilado há de perceber que esses fatores conformam a capacidade de resposta do gasto privado aos estímulos do dispêndio “autônomo” do governo. Reminiscências keynesianas.

O investimento em infraestrutura executado ou organizado pelo setor público não concorre com o investimento privado, mas, ao contrário, serve como indutor ou o complementa. Desde o imediato pós-Guerra, o exame da trajetória das economias emergentes confirma que o bom desempenho do investimento público foi crucial para a obtenção de taxas de crescimento elevadas. Nas economias industriais modernas, o investimento público desempenha uma inarredável função coordenadora das expectativas do setor privado.

Esse trecho foi escrito em um documento recheado de recomendações aos países ditos emergentes. Os economistas do Fundo Monetário estão a recomendar uma ação programada e coordenada dos governos para usar o investimento público como forma de promover o crescimento. Os cálculos do multiplicador e as considerações sobre o produto potencial de médio prazo demonstram que o Fundo recuperou réstias da herança keynesiana em seu embornal de sabedorias.

Vamos dar voz à economista Yuen Yuen Ang, da Universidade John ­Hopkins:

“Para alguns comentaristas, a recente aprovação do CHIPS and Science Act e do Inflation Reduction Act, as duas políticas industriais do presidente dos EUA, Joe Biden, marca o fim do neoliberalismo e o ressurgimento do intervencionismo como paradigma dominante.

Mas esta é uma falsa dicotomia. Os governos não se limitam a uma escolha binária entre o laissez-faire e o planejamento de cima para baixo. Uma terceira opção, há muito negligenciada pelos formuladores de políticas e economistas, é que os governos direcionem processos de improvisação e criatividade de baixo para cima, semelhantes ao papel de um maestro de orquestra. Pode-se encontrar muitos exemplos disso na China e nos EUA.”

Custa crer que um economista experiente e bem preparado como o ex-ministro Maílson da Nóbrega tenha sucumbido aos (des)encantos das banalidades liberaloides. Tempos difíceis. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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