Justiça

Instituições estão falidas e passou da hora de reinventá-las

Promotor de justiça em São Paulo Gustavo Costa escreve sobre o colapso das instituições brasileiras

Sessão de Abertura do Ano Judiciário no STF. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
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2020 foi um ano muito diferente. Não só pela pandemia. Mas pela série de acontecimentos iniciados algum tempo antes. Parece que a pandemia foi o desfecho. O desfecho trágico que marcou a entrada no tempo atual – e no que se avizinha.

A facilidade com que se deram golpes de Estado em alguns países da América Latina – com destaque especial para Brasil, Equador e Bolívia –, com que se rasgaram constituições, manipularam ordenamentos jurídicos, inventaram motivos “nada jurídicos” para perseguir e prender inimigos políticos, jogaram no lixo o chamado “Estado de Direito”, tão propalado no período anterior, parece-me, faz com que somente alguém totalmente fora da realidade possa falar em “defesa da democracia” confiando nas atuais instituições que representam os Estados nacionais.

Embora alguns tenham a ilusão de que já houve, nos trinta anos da Constituição vigente, algum resquício de democracia, o fato é que a população pobre e excluída nunca conheceu o mínimo Estado de Direito. O número de presos passa dos 700 mil, segundo dados oficiais, e o número de mortos por forças do Estado é extraordinário. Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que as polícias do Brasil mataram, só nos últimos de três anos, mais de 2.250 crianças. Crianças!

É preciso uma dose extrema de otimismo para não perceber que o Estado brasileiro declarou guerra contra seu povo faz tempo.

E essa guerra conta com a mais completa complacência das instituições. São elas que dão forma jurídica à política de extermínio da população negra e pobre, já nos ensinou Orlando Zaccone. Nem sempre porque assim querem. Mas porque não têm a mínima força para defender nenhum Estado de Direito. Quando a pressão sobe, são as armas que mandam, e não as leis e as sentenças judiciais.

Essas instituições não foram capazes de fazer absolutamente nada de efetivo para enfrentar a pandemia do coronavírus. Falam do negacionismo e da incúria do presidente, mas governadores, prefeitos, deputados, promotores e juízes, ao contrário do que ingenuamente se acredita, muito pouco fizeram para proteger a população da doença. Apostaram em medidas restritivas de limitação da liberdade, mas deixaram a população à míngua, perdendo postos de emprego e renda, passando fome e morrendo em decorrência do vírus.

Uma pergunta que me intriga é: há notícias de governadores e prefeitos que instituíram programas de recomposição de renda para seus cidadãos? Houve ações e decisões judiciais nesse sentido? Cobra-se corretamente do governo federal, mas as demais instâncias de poder nada fazem, a não ser promover jogo de cena na imprensa e – como sempre – colocar a culpa no povo por falhar no isolamento. Mas como se isolar se ao fazê-lo se passa fome?

Não deveria ser segredo para ninguém que se diz preocupado com o povo que nas favelas e periferias simplesmente “não existe” pandemia. Lá, a vida segue normalmente, apesar de tudo. Ninguém está protegido de nada. Ficar em casa representa a mais absoluta miséria. E ainda se ouve que o vírus não vê classe social, atinge igualmente ricos e pobres etc. Nem uma criança acreditaria, mas as instituições parecem viver de discursos feitos para bobos.

Nos estabelecimentos prisionais, as práticas são típicas de campos de concentração. Não há segurança sanitária para os presos, não há atendimento médico, as famílias não têm acesso aos seus. O caos e o sofrimento imperam. Não há audiências de custódia, não há apresentação de adolescentes apreendidos. O controle sobre abusos, agressões e torturas é uma nulidade total. Mas as instituições dizem que está tudo funcionando normalmente…

Todas as catástrofes brevemente citadas acima não encontram qualquer resistência no sistema político. Pelo contrário, as instituições do Estado atuam para legitimar e, não raro, fomentar políticas de restrição de direitos, de cortes de investimentos na área social, de abandono dos mais necessitados; políticas excludentes, insensíveis, assassinas.

A contemporização com as práticas genocidas do Estado, com minúsculas e honradas exceções, é a regra nas instituições públicas. A guerra às drogas – como se já não houvesse guerra o suficiente – é o instrumento mais eficaz de extermínio da população negra. Sem o fim da guerra às drogas, sem o controle da atividade policial, práticas que poderiam ser feitas pelas instituições, mas não são, inviável qualquer discurso oficial antirracista se sustentar.

Como, então, propalar que a “defesa das instituições” é necessária para manter o regime democrático? Como acreditar que a atividade parlamentar – e a recente disputa pela presidência das casas demonstrou isso de maneira contundente – pode trazer algum benefício concreto para a população, além das migalhas que, de vez em quando, aparecem? Em tempos de ultraliberalismo, nem isso…

Cedo ou tarde, o povo vai perceber que confiou em instituições que traíram sua missão. Que viraram as costas para os vulneráveis. Que se embrenharam em conchavos políticos e ficaram a uma distância infinita dos destinatários dos seus serviços. E todos aqueles que se esforçaram para defendê-las estarão incluídos.

Necessário que se repense o exercício do poder. As instâncias de decisão devem, paulatinamente, sair da esfera das “instituições”, absolutamente falidas, e passar para as mãos das verdadeiras representações populares. As entidades da sociedade civil e os movimentos sociais devem participar da instituição e manutenção de políticas públicas. As discussões sobre a “segurança pública” devem ter a massiva participação das comunidades, principalmente as mais pobres. As carreiras jurídicas devem ser providas pelo voto popular, com mandatos limitados no tempo.

Uma ruptura total com o atual modelo, incapaz de satisfazer os anseios do povo, é mais que urgente. É uma questão de vida ou morte, literalmente.

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