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Infame homenagem

Batizar um viaduto de “Deputado Erasmo Dias” é um acinte

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Fotos da invasão ordenada pelo Coronel Erasmo Dias à PUC (Foto: Reprodução/Portal PUC)
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A Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de junho de 2023, denominou de “Deputado Erasmo Dias” um viaduto em uma rodovia para “homenagear” um dos mais emblemáticos violadores dos direitos fundamentais na ditadura. A proposição legislativa, de autoria do então parlamentar Frederico d’Avila, do Partido Social Liberal (PSL), constou de uma justificativa segundo a qual Dias foi – pasmem! – um homem público a serviço do povo e que deveria ser eternizado por valorosos feitos.

A referida lei inoculou no sistema de Direito positivo estadual atos de glorificação e de legitimação da ditadura, em afronta aos princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, democracia e cidadania, que asseguram o direito à memória histórica e à verdade e, ainda, o respeito à dignidade das vítimas.

Dias dirigiu o aparelho repressivo para praticar, em larga escala e de forma brutal, assassinatos, prisões arbitrárias, torturas e toda a sorte de tratamentos cruéis e degradantes, inclusive contra mulheres e crianças. Ele comandou atos de barbárie e de incomum crueldade num dos mais emblemáticos episódios da nossa história recente: a invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 22 de setembro de 1977. Então locus de resistência, o campus ­transformou-se em palco de sangue e dor.

São detrimentosas ao Estado de Direito constitucionalmente estabelecido medidas legislativas que inoculam no sistema atos de glorificação e de legitimação da ditadura. Além de negar as severas violações aos direitos fundamentais do período mais doloroso da nossa história recente, procura-se legitimar a exceção e degradar os valores democráticos. A glorificação de regimes totalitários e de exceção, bem como a proteção jurídica da memória histórica, da verdade e da dignidade das vítimas, é uma grande preocupação nas democracias constitucionais contemporâneas, especialmente aquelas que sofreram, diretamente, as faces do totalitarismo no século XX.

Na Alemanha, é vedado aprovar, glorificar ou justificar o regime nazista, perturbando a paz pública e violando a dignidade das vítimas. Iniciativas similares são encontradas na França, na Bélgica, na Espanha e na Áustria, países nos quais são, no geral, proibidos atos perturbadores da reconstrução nacional e, ainda, que impliquem a banalização, negação ou aprovação dos crimes contra a humanidade praticados pelo totalitarismo.

Há uma razão para o Direito proibir atos de justificação de regimes totalitários. A reconstrução em bases democráticas pressupõe, por um lado, a preservação da memória histórica e, por outro, que a democracia constitucional não seja desafiada ou abalada por iniciativas perturbadoras de valores fundamentais irrenunciáveis. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a Lei 6.683, de 1979, a Lei de Anistia, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, protegeu os agentes do autoritarismo contra a responsabilidade pelos gravíssimos crimes cometidos na ditadura. É preciso que o Supremo, ao menos, vede que esses mesmos agentes sejam objeto de homenagens.

A Segunda Guerra Mundial provocou uma revolução na forma como o homem enxerga o mundo, uma vez que dois grandes pilares da sociedade ocidental – a democracia e a ciência – deixaram de garantir a tomada de decisões éticas. No plano jurídico, formulou-se, em resposta, um sistema pautado por constituições rígidas, que impõem, incondicionalmente, o respeito a determinados valores. O objetivo dessas constituições rígidas do pós-Guerra, como afirmou Luigi Ferrajoli, foi constituir-se em semente antifascista.

A nossa Constituição, espelhando a evolução do chamado constitucionalismo do pós-Guerra, representou, nessa trilha, uma semente contra a ditadura. Ela não é neutra. Repudia intensamente qualquer forma de autoritarismo e de ofensa aos direitos fundamentais, tais como aquelas violações praticadas pela ditadura. Seus valores visam, em última análise, constituir-se em antídoto contra o autoritarismo e possui contundente resposta às pretensões da homenagem ora discutidas no presente artigo.

Não se trata de mera e simples homenagem a Erasmo Dias isoladamente considerada, a qual, por si só, seria de extrema gravidade. Estamos diante de propósitos marcadamente sistêmicos que visam degradar o nosso pacto civilizatório. Nessas bases, é preciso reafirmar o compromisso irrenunciável da nossa Constituição com os valores democráticos e, ainda, com os direitos fundamentais à memória histórica, à verdade e de respeito à dignidade das vítimas. •

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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