

Opinião
Indignar-se é preciso
Não cabe qualquer forma de desresponsabilização do governo Bolsonaro pelo genocídio do povo Yanomâmi


Não podemos perder a capacidade de indignação. É preciso produzir respostas rápidas que reparem este quadro inaceitável. Mas é importante, também, que os responsáveis sejam rigorosamente punidos. Como dizia o Marquês de Maricá, “a impunidade é segura quando a cumplicidade é geral”.
Estava terminando a residência em Medicina Preventiva e Social, em 1989, quando fui trabalhar com David Capistrano da Costa Filho, secretário de Saúde de Santos e, posteriormente, prefeito da cidade. Um dos mais qualificados sanitaristas do País, ele foi fundamental na implantação do SUS e da Reforma Psiquiátrica.
Uma das mais marcantes lições dele recebida é a de que um servidor ou qualquer pessoa que ocupe uma função pública jamais pode perder a capacidade de se indignar diante do sofrimento e da injustiça social.
As cenas que invadiram nossas retinas e que tratam do genocídio do povo Yanomâmi me fizeram relembrar Capistrano. Como ficar indiferente diante das imagens de crianças, adultos e idosos esquálidos, desnutridos, escandalosamente vítimas de um governo que pôs em prática uma estratégia que combina abandono, exploração econômica e destruição ambiental, e cuja equação final é a morte e o extermínio de um povo?
Cada uma dessas crianças passou fome por longo tempo, antes de desenvolver um grau elevado de desnutrição. Morrem de forma desnecessária, indigna, vítimas do abandono governamental. A desestruturação dos programas de cuidado às crianças indígenas resultou na elevação alarmante de óbitos. Já se sabia, por exemplo, que crianças indígenas têm 14 vezes maior risco de morrer por diarreia. Insisto: são crianças que passaram fome, tiveram malária e outras doenças, e que sofreram muita dor antes de morrer de forma absurda e inaceitável.
Este quadro deve ir para a conta daqueles que sustentaram o golpe contra Dilma Rousseff. Deve ser atribuído, ainda, aos que em nome da moralidade e do combate à corrupção destruíram a nossa jovem democracia e permitiram a ascensão do presidente genocida e da sua legião de golpistas. Mas há um quinhão de responsabilidade, também, para os que reagem à implementação de um regime necropolítico em nosso país com total indiferença.
No Relatório Final da CPI da Covid já havia elementos suficientes para caracterizar o genocídio impetrado contra os povos originários. Ali, se demonstra como o governo Bolsonaro deixou de implementar ações de proteção das populações indígenas durante a pandemia.
Nas várias denúncias feitas no Brasil e no exterior, já se gritava em alto e bom som que vinha ocorrendo um extermínio, levado a cabo por garimpeiros, madeireiros e traficantes de armas, drogas e animais silvestres, que, muitas vezes, agiam em aliança com personagens que orbitam ou estão diretamente ligados ao mundo da política. Não dá para dizer que ninguém sabia.
O governo Bolsonaro, como indica o Relatório Final do Governo de Transição, suspendeu medidas de cuidado aos povos indígenas, aí incluídas ações de mitigação da insegurança alimentar e nutricional, e desestruturou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde.
No âmbito dos Distritos Especiais Sanitários Indígenas, mais da metade dos contratos estava próxima a expirar ou já expirada, com graves denúncias de corrupção e deficiências na gestão, resultando em desassistência. Além disso, a Sesai teve seu orçamento para 2023 cortado em 59%. Foram ainda desarticulados os instrumentos de priorização e provisão de médicos para a saúde indígena e desestruturados os sistemas de vigilância alimentar e nutricional indígena e de informação da atenção à saúde indígena.
Poucos sabem que a saúde indígena é responsabilidade exclusiva do governo federal. Para os povos que vivem em aldeias, ações de atenção básica e saneamento são atribuições diretas e exclusivas do Ministério da Saúde, por meio da Sesai.
É a Sesai que planeja, coordena, supervisiona, monitora e avalia a implementação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. É ela que cria políticas de promoção, proteção e recuperação da saúde e organiza e implementa a atenção primária à saúde dos povos indígenas. Além disso, articula sua integração com o SUS na região e nos municípios que compõem cada Distrito Sanitário Especial Indígena.
Não cabe, portanto, qualquer forma de desresponsabilização de Bolsonaro, seus ministros da saúde, secretários da Sesai e diretores da Funai. Nem de cada um dos responsáveis pelas diferentes áreas do governo que se omitiram ou contribuíram para este genocídio. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Indignar-se é preciso”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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