

Opinião
Independência sem povo
O Brasil, ao assumir a conciliação como método do jogo político, tornou-se um país inabilitado para as mudanças


O povo foi o grande ausente na Independência do Brasil. Foi ausente também em todos os eventos de caráter fundante posteriores, como a Proclamação da República, a Revolução de 1930, a redemocratização de 1945, os eventos que marcaram o golpe de 1964, a transição e a Constituinte de 1988. Na Revolução de 1930, houve engajamento mais significativo, assim como na campanha das Diretas. Mas esta resultou no Colégio Eleitoral, um conciliábulo das elites, que escolheu o presidente e o vice.
A primeira Constituição brasileira, em 1824, foi outorgada pelo príncipe herdeiro do poder colonial, que assumiu o império do Brasil como herança da Coroa paterna. Nenhuma Constituição posterior, nem mesmo a atual, teve o aval fundante e legitimador do povo. O poder político e a própria nação carecem de um fundamento legitimador popular, ao contrário de outras nações.
A Independência não passou de um acerto entre a elite governante da colônia portuguesa representante da aristocracia rural e o príncipe herdeiro, dotado de pendores absolutistas. A chamada “Guerra de Independência” que se sucedeu em algumas províncias não passou de escaramuças entre tropas portuguesas e um grupo, na sua maior parte de mercenários, recrutados às pressas por José Bonifácio. Não se formou um exército popular e as escaramuças careceram de qualquer sentido heroico. As escaramuças não semearam significações para o futuro nem serviram de história exemplar para a qual as gerações futuras pudessem recorrer como fonte inspiradora.
Nem sequer há certeza acerca das palavras pronunciadas por D. Pedro I no propalado Grito do Ipiranga. A literatura historiográfica construiu uma declaração a posteriori, atribuindo-a ao príncipe: “Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar-nos e perseguir-nos. De hoje em diante, nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais! Tirem suas braçadeiras, soldados! Viva à independência, à liberdade e à separação do Brasil. Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liberdade. Brasileiros, a nossa dívida, de hoje em diante, será: Independência ou morte”.
Muitos historiadores sustentam que as palavras não foram essas. Teriam sido outras, mais prosaicas e chulas. Mesmo se tivessem sido essas, carecem de significação maior. Trata-se de um rompimento de natureza mais pessoal, não tanto com a Casa Paterna, mas com as Cortes Portuguesas que, apesar de terem surgido como fruto da revolução liberal do Porto, queriam recolonizar o Brasil.
Compare-se a declaração de D. Pedro I à Declaração de Independência dos Estados Unidos. Nesta estão as razões, os fundamentos, os direitos, os princípios e os valores que justificam a Independência e lançam os alicerces constitutivos da nova nação. Em todos os documentos da independência brasileira o que se vê é uma miséria de concepções fundantes. A Independência foi feita por figuras palacianas, agrupadas em torno do príncipe, sem representação popular.
Caso não se queira tomar como referência a independência dos EUA, vamos à Argentina. A “Acta de la Independencia”, elaborada e assinada pelos representantes do Congresso das Províncias Unidas, reunido na cidade de San Miguel de Tucumán, em 19 de julho de 1816, é muito mais plena de significados do que os documentos brasileiros. A ata expressava os desejos de emancipação dos habitantes das províncias. Invocou os valores da liberdade e da justiça e o propósito de construir uma nação livre e independente, rompendo os vínculos com os reis tirânicos da Espanha e rejeitando a dominação estrangeira. Em 1825, com o fim das escaramuças, Brasil e Portugal celebraram o Tratado de Paz, Amizade e Aliança entre o império nascente e o reino de Portugal.
A história posterior do Brasil seguiu essa tipologia de mudanças designada por Raymundo Faoro como “transições transadas”. São transições ou mudanças nas quais as velhas elites dominantes se incorporam aos novos segmentos políticos que surgem proclamando algum tipo de mudança. Os próprios governos petistas expressam essa tipologia: incorporaram nesses governos todos os tipos de elites tradicionais para garantir a governabilidade.
O Brasil, ao assumir a conciliação como método do jogo político, tornou-se um país inabilitado para as mudanças. Inabilitado para construir um propósito unificante nacional, para construir a efetividade da igualdade, da liberdade, da justiça e dos direitos de cidadania. Lula reconheceu esse fato recentemente ao dizer que damos cinco passos à frente e, em seguida, dez para trás. Enquanto o povo não se organizar e não constituir força mobilizadora, conduzido por líderes autênticos e virtuosos, portadores de uma estratégia de mudanças, o Brasil permanecerá preso a esta inabilitação para a mudança. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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