

Opinião
Inconsciente e alienação
Há uma incontornável coincidência de ideias entre Freud e Marx, embora o psicanalista vienense jamais tenha conhecido o filósofo e economista alemão


Sigmund Freud desestabilizou para sempre a imagem iluminista do sujeito kantiano, centrado na razão. Ao escutar, sob ponto de vista clínico, mulheres que sofriam de assustadoras convulsões e ataques histéricos, o médico judeu-austríaco entendeu que desconhecemos grande parte das “razões” que movem os nossos atos, alegrias, tristezas, desejos e temores. Qual seria, para Freud, a “via régia” – expressão dele – de acesso ao inconsciente? Os sonhos. Seu primeiro livro, A Interpretação dos Sonhos (1900), não foi apenas a pedra inaugural na criação da psicanálise, como também uma das três obras que inauguraram o século XX e que abalaram para sempre a convicção de que o homem é fruto da criação divina.
A contribuição freudiana, ao postular a existência de uma parte inconsciente de nossos pensamentos, aterroriza o pobre sujeito kantiano por revelar que não somos soberanos nem em nossa própria “casa”. O inconsciente não é exatamente um “lugar” que abriga desejos e afetos que a consciência desconhece. É um mecanismo para ignorar as fantasias que repudiamos por não estarem de acordo com nossa moral e nossos ideais.
Daí que as convulsões e outras crises sofridas por algumas mulheres deixaram de ser associadas a problemas orgânicos. Para Freud, o chamado “ataque histérico” – termo quase obsoleto na modernidade pós-freudiana – era expressão da angústia de suas pacientes diante de desejos e fantasias sexuais reprimidas por serem considerados inapropriados para as moças solteiras e impensáveis para as casadas. “A histérica sofre de reminiscências”, escreveu em seus Estudos Sobre a Histeria.
No ensaio Meus Pontos de Vista Sobre o Papel da Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1906), Freud observa que, “apesar da negação inicial, mais constantemente surgiam tais fatores patogênicos oriundos da vida sexual”. Ele aponta ainda que neurastenias e neuroses de angústia mostravam relações constantes com a natureza do distúrbio sexual. Gosto de constatar o quanto a liberdade sexual das gerações pós-1968 devem ao médico vienense nascido no século XIX.
Nada seria mais equivocado do que comparar Freud aos profissionais hoje chamados de sexólogos. Ele nunca foi um instrutor sexual, e sim um médico que compreendeu a origem sexual do sofrimento neurótico; ou um paleontólogo tentando decifrar vestígios de fantasias recalcadas. Daí sua insistência sobre o valor dos sonhos, como via de acesso ao inconsciente. Esse último, aliás, não é um “lugar” demarcado no cérebro humano, mas um estado das representações mentais e fantasias que poderiam ferir o nosso narcisismo. Essa via de acesso tampouco é direta: trata-se de um conjunto de mensagens cifradas, que chegam à consciência na forma de fantasias. Não as agradáveis, cujas formulações conscientes são motivos de prazer, mas aquelas que ferem a imagem narcísica que temos de nós mesmos.
Não tenho espaço, aqui, para enumerar todas as propostas teóricas advindas de sua prática constante da psicanálise, método criado por ele para aliviar o sofrimento de quem manifestava ansiedade, angústia, inibições, “esquecimentos” sintomáticos, paralisias e afasias. Esses males não advinham de problemas de saúde, mas de conflitos inconscientes.
Cito aqui, de passagem, dois ensaios freudianos que não ficam a dever nada tanto para a filosofia quanto para a medicina. O primeiro, mais acessível teoricamente e mais popular, é A Interpretação dos Sonhos (1899), no qual Freud inaugura a hipótese teórica de que os sonhos seriam a “via régia” de acesso ao inconsciente. O outro, de igual magnitude teórica, mas muito mais intrigante do que o texto sobre os sonhos, é Além do Princípio do Prazer (1920). Se, para ele, o sentido da vida é dado pelo princípio do prazer, o que estaria além dele? A “pulsão de morte”, interpretada erroneamente, vez ou outra, como desejo de matar alguém. Não: a pulsão de morte é uma tendência oposta às pulsões de vida: reduzir a vida ao mínimo esforço possível. Perdoem-me as simplificações de uma teoria tão complexa, mas tenho de fazer o artigo caber na página…
Vale acrescentar que poderia ser de Freud, com uma ligeira modificação, uma célebre frase de Karl Marx: “Os homens fazem a história, mas não sabem como”. A palavra para esse desconhecimento, na psicanálise, é alienação. Eis uma coincidência de ideias entre Freud e Marx, com quem o médico jamais teve contato. Outra incontornável, aliás. O conceito de alienação não fica longe de um dos termos fundamentais na psicanálise freudiana: inconsciente. Volto ao assunto em dezembro. •
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
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