Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Império dos acionistas mina os fundamentos da sociedade livre

Os controladores da riqueza em sua forma mais líquida rejeitam a possibilidade de vertê-la em criação de riqueza nova

Foto: Freepik
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Em meio às turbulências do capitalismo global, a Boston Review ofereceu aos leitores recordações de 1962. Conta a revista que, nesse ano da graça, Milton Friedman publicou o livro Capitalism and Freedom. Nele, o economista libertário sustentou ardorosamente a excelência dos mercados livres e disparou contra a intervenção governamental.

O livro também foi crucial para a defesa da primazia dos acionistas: as corporações não devem ter outro propósito, senão maximizar os lucros para seus acionistas. “Poucas tendências”, Friedman escreveu, “poderiam minar tão completamente os fundamentos de nossa sociedade livre quanto a aceitação da responsabilidade social pelos gestores corporativos, cujas obrigações devem se restringir a ganhar dinheiro para seus acionistas.”

A revista The Economist, um dos santuários do liberalismo econômico, anuncia na capa de sua edição de 24 de agosto: O Big Business está começando a aceitar responsabilidades sociais mais amplas. Subtítulo: Perseguir o valor do acionista já não é suficiente, parece.

Na visão dos mercadistas radicais, diz a revista, a perseguição sistemática do valor dos acionistas iria, por si só, entregar ao público bens e serviços de qualidade, otimizar o emprego e criar maior riqueza – riqueza destinada à eficiente alocação de recursos. Uma visão de mundo que, em sua simplicidade reconfortante, aliviava o lombo das corporações das responsabilidades sociais.

Não mais, argumentou Larry Fink na American Business Roundtable. Presidente do BlackRock, um gigante da gestão de ativos, Fink tem apoiado a ideia de que as corporações devem perseguir um propósito social, além dos lucros.

O despertar social dos gestores da finança deita raízes nas metamorfoses ocorridas nas formas de acumulação da riqueza espargidas pelo mundo capitalista na posteridade dos anos 80 do século XX. Deixada a seus instintos pelas políticas pró-mercado, a Economia Monetária da Produção assumiu a forma de Economia da Produção Monetária, ao mesmo tempo verdadeira e ilusória. Verdadeira para os que se entregam à acumulação de Dinheiro e ilusória para os fâmulos desesperados que precisam da moeda para consumir e sobreviver.

“Somente como exceção pode o trabalhador, com força de vontade, força física e perseverança, avareza etc., transformar sua moeda em Dinheiro, exceção de sua classe e das condições gerais de sua existência” (Karl Marx, Grundrisse). Se, por suas condições gerais de existência, o conjunto dos trabalhadores não pode transformar sua moeda em Dinheiro, sem o Dinheiro empenhado em pagar seus salários e rendimentos, os trabalhadores não conseguem moeda para adquirir os meios de vida.

A Economia da Produção Monetária ameaça os gestores do Dinheiro. A saúde dos bancos e das demais instituições financeiras periclita diante da perenidade da valorização dos estoques de ativos e da queda correspondente dos rendimentos do capital fictício. A experiência da crise de 2007/2008 mostra que as injeções de liquidez destinadas a impedir o colapso financeiro e a paralisia dos mercados interbancários contiveram a derrocada dos preços dos ativos, mas não conseguiram reanimar a economia. Nas horas vagas, e nas outras também, as empresas entregaram-se à bulha da recompra das próprias ações e mandaram bala na distribuição de dividendos com a grana abastecida pelos bancos centrais.

As bolsas de valores e os rendimentos nanicos dos bônus do Tesouro fumegam os vapores que sopram às alturas os preços dos ativos. Não são desprezíveis os riscos embutidos no comportamento dos mercados financeiros pós-crise, empurrados para outra bolha nas bolsas e nos preços elevados (e rendimentos baixos) dos bônus privados e públicos.

Após o Quantitative Easing, a liquidez assegurada pelos bancos centrais permanece represada na posse dos controladores da riqueza velha, o rastro financeiro da riqueza já acumulada. Os controladores da riqueza em sua forma mais líquida rejeitam a possibilidade de vertê-la em criação de riqueza nova, com medo de perdê-la nas armadilhas da capacidade sobrante e do desemprego disfarçado nas ocupações precárias “premiadas” com rendimentos cadentes.

Em artigo publicado na The Brookings Institution, em parceria com Łukasz Rachel, Lawrence Summers manifesta suas perplexidades com a estagnação secular, anomalia denunciada pelas taxas de juro reais muito baixas: “Acreditamos que as tendências às baixas taxas de juro são mais bem compreendidas em termos de mudanças nas relações entre poupança e investimento ou, de modo equivalente, em termos das alterações nas formas de posse da riqueza almejada pelos consumidores e no desejo de acumulação de capital pelos produtores”. A faina da acumulação de Dinheiro bloqueia a circulação da Moeda.

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