

Opinião
Hora de virar a página
O presidente Lula montou um ministério experiente, representativo e plural. Agora, precisa aprender a lidar com o desastroso legado de Bolsonaro e criar uma agenda positiva


O golpe frustrado de 8 de janeiro, a crise militar e a tragédia dos Yanomâmis foram acontecimentos que se impuseram pela sua gravidade sobre outras pautas, que mereciam e merecem um debate público neste início do terceiro governo Lula. Mesmo reconhecendo a prioridade dos fatos citados, penso ser conveniente introduzir outros pontos no debate.
O primeiro ponto a ser constatado é que o governo começou com certo déficit democrático. A campanha do primeiro turno iniciou com determinada composição, definida por um conjunto de diretrizes programáticas. Na verdade, os programas de governo dos candidatos tiveram pouca relevância. No segundo turno, Lula ampliou o leque de alianças, tendo Simone Tebet como a mais notória figura dessa ampliação. Programaticamente, pouco mudou em relação a primeiro turno. Finalmente, a composição ministerial foi ainda mais ampla, agregando partidos e setores de partidos que formalmente não apoiaram a candidatura Lula.
Isso quer dizer que o governo expressa inclinações, tensões e proposições programáticas diferentes das diretrizes iniciais. Nada de errado nisso. Mas a opinião pública deveria ser brindada com um novo documento político-programático que tornasse público o significado dessa composição e o sentido geral do governo que se formou. O atual governo da Alemanha, liderado por Olaf Scholz, constituiu-se com partidos que foram adversários nas eleições. Atendendo ao preceito democrático de que a sociedade tem o direito de saber qual o sentido da nova composição, os partidos pactuantes divulgaram um documento político-programático da coalizão formada.
Quanto à definição dos ministérios, o governo optou por um modelo hiperdepartamentalizado, com 37 ministros. A combinação de um modelo departamental com um modelo matricial poderia ter sido melhor escolha, com um número reduzido de ministérios. Dessa forma, haveria maior integração, agilidade e eficiência nas decisões e nas execuções político-administrativas. Em termos comparativos, nos EUA existem apenas 15 secretários de Estado. Na França e na Alemanha, são 16 ministros e no Reino Unido, 21. Na América do Sul, a Argentina e a Colômbia têm 18 pastas; o Chile, 23; o Uruguai, 13; e a Venezuela, 33.
Três termos definem a composição ministerial: trata-se de um ministério experiente, representativo e plural. Experiente, no sentido de que muitos exerceram funções públicas, inclusive em cargos executivos, como prefeitos e governadores. Representativo, na medida em que praticamente todos os ministros são figuras públicas representativas, inclusive aqueles que não exerceram funções públicas anteriormente, a exemplo de Silvio Almeida e Nísia Trindade. Plural e mais diverso porque tem 11 mulheres, negros e representantes dos povos originários. É bem verdade que poderia ser ainda mais plural, mas a composição expressa um inegável avanço.
Bolsonaro, em seus quatro anos de governo, escolheu operar uma agenda negativa, de conflitos, de guerra política. A agenda predominante neste início de governo Lula também é predominantemente negativa. Não foi escolha do governo, mas imposição de acontecimentos funestos.
O governo não pode se esquivar dessa agenda, mas pode operar no sentido de mitigá-la e de introduzir pontos de uma agenda positiva. Por exemplo, ao mesmo tempo que denuncia o genocídio dos Yanomâmis, deve enfatizar a ajuda, as ações de solidariedade, de combate ao garimpo e ao desmatamento. Ao mesmo tempo que denuncia o golpe de 8 de janeiro, deve enfatizar ações que estimulam e valorizam a democracia. Deve transitar para uma agenda que realmente lhe interessa, uma agenda centrada no social, no ambiental, na economia, na Saúde, na Educação etc.
O presidente Lula assumiu este mandato com um setor significativo da sociedade contestando a legitimidade da eleição. Por isso, ele precisa operar medidas que reforcem sua legitimação e reduzam os questionamentos. A legitimação forte requer certo tempo, mas precisa ser operacionalizada com a capacidade de governar, de produzir êxitos e bem-estar. Necessita, ainda, de atividades de natureza celebrativa e apologética das ações do governo. Mas essas atividades só produzirão efeitos positivos se a eficiência do governo for efetiva, se o País for vitorioso no enfrentamento de seus desafios e se o povo tiver prosperidade efetiva. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hora de virar a página”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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