Esther Solano
[email protected]Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp
São palavras generosamente compartilhadas comigo, para que eu as compartilhe com vocês. Falar da nossa dor é reconstruir o laço que nos une
Esta coluna tem choro, luto, lágrimas. Mas não serei eu a falar. Vou dar voz a amigos queridos, a amados, a desconhecidos, a quem, como você e eu, sofre. Hoje a coluna reúne as lágrimas que também são as minhas. São palavras generosamente compartilhadas comigo, para que eu as compartilhe com vocês. Falar da nossa dor é reconstruir o laço que nos une. Obrigada a quem me enviou suas palavras. Obrigada a quem as lerá. Obrigada a quem se comoverá e chorará. Escutar a dor de outro ser humano e sofrer com ela significa que ainda estamos vivos.
— Por um momento cheguei a pensar em fazer o mórbido exercício de contabilizar o total de conhecidos, mesmo que não tão próximos, mortos pela Covid nestes 13 meses de pandemia. Quando percebi, pelas primeiras estimativas, que o número ultrapassaria o bom senso e a razoabilidade psicológica, abortei a missão.
A dor de quem sofreu a perda:
— Diante dela, presenciando o horror da perda do seu amor, choramos as duas. Eu não sei o que dizer – não há o que dizer. Nesta hora, chorarmos abraçadas seria o consolo possível, mas nem isso podemos fazer. Horror absoluto.
— Domingo perdi uma prima. Além da dor, algo chocante ocorreu. Meus tios e a filha de minha prima foram ao hospital e tiveram de deixar duas crianças em desespero sozinhas porque nenhum parente próximo ou vizinho se propôs a ir até a casa. No velório, nem o pastor da igreja que o casal frequenta foi realizar uma breve fala.
— Sim, foi a despedida mais triste da minha vida. Sem abraços, aconchegos e toques. Apenas lágrimas correndo por trás das máscaras, que escondiam em nossos rostos uma dor que dilacera.
— Sabemos que ela será apenas mais um número, uma estatística pro Estado, uma pequena fração nas curvas de contágio.
A dor dos professores:
— Pela primeira vez vou precisar tirar uma licença de saúde de mais de 15 dias. Nunca passei por isso. O medo de retornar à sala de aula nestas condições, o estresse do teletrabalho, a rotina doméstica intensificada, a ausência da partilha… Ver meus colegas morrendo… Não querer fazer parte das estatísticas… pensar no filho que é grupo de risco… São tantas incertezas e tantas dores.
A dor da culpa de quem sobreviveu, mas não pôde fazer mais:
— O que mais tenho sentido é culpa. Aposentei pouco antes da pandemia, agradeci a Deus por poder estar em casa após 32 anos trabalhando na enfermagem. Por várias vezes me senti com vontade de ir à luta e me voluntariar, mas fui covarde, isso me deixou muito ansiosa, não estou fazendo nada que tinha programado fazer, apenas esperando a pandemia passar.
— O mais difícil tem sido lidar com a dor dos outros, quando não estou dando conta das minhas. Minha família toda perdeu o emprego, meus pais, meu companheiro, mas eu tenho conseguido fazer projetos para manter as contas de casa. Minha mãe mora longe e esteve muito doente. Não tive como cuidar dela. Muitos amigos estão doentes (de outras coisas que não Covid) e em tempos normais eu estaria presente, ativa. Agora só mando mensagens, faço ligações e tudo parece tão insuficiente.
A dor do jovem com um futuro que lhe parece dar as costas:
— A pandemia, como jovem universitário e da periferia, me fez perder a perspectiva de futuro. A falta de oportunidades que havia na pré-pandemia para jovens de periferia tornou-se maior e mais intensa. Além da falta de perspectiva, tem a questão da ansiedade pelo contexto da crise econômica e sanitária que estamos vivendo, angústia pela falta de interação social, e o desânimo em relação aos estudos e à qualificação.
A dor da solidão:
— São 13 meses confinada. Eu mais eu. Com um intervalo de uma semana, em dezembro, junto à família. Não sei se me ajoelho em agradecimento, por ter condições de permanecer isolada, ou se me atiro pela janela de tanta solidão.
A dor da desesperança:
— Desesperança. Esta é a palavra que define a minha expectativa sobre o futuro próximo deste País. Mesmo em queda, aproximadamente 30% da população ainda se sente representada por alguém que menospreza a dor do povo brasileiro, que implementa políticas que sacrificam os mais pobres, que flerta com o totalitarismo. 30%!!!! Entre os outros 70% estão os indignados, os atônitos, os acomodados, os alienados, os que ainda têm esperança e os que, como eu, estão deixando de conjugar o verbo “esperançar”.
Mas não quero acabar a coluna com morte. Quero acabar com um testemunho de amor, o amor que salva, que cura.
A vida vence:
— Nesse turbilhão conheci uma das pessoas mais especiais que poderia encontrar, uma mulher acostumada a matar não um, e sim dois leões por dia. Ela é uma mulher trans e sei que, por toda a série de preconceitos enraizados na sociedade, viver essa história em tempos “normais” seria mais difícil pela minha própria covardia. Mas a possibilidade de tudo ser tão volátil, de amanhã eu ou ela não estar aqui, me fez querer dizer pra todos que a amo. E digo pra senhora também: amo a Gabi.
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.
Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.
Assine a edição semanal da revista;
Ou contribua, com o quanto puder.