Opinião

Hipocrisia moralista volta-se contra a deputada estadual Isa Penna

Democracia implica a observância de valores morais de tolerância e convivência que os deputados parecem desconhecer

A deputada estadual Isa Penna. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp
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O obscurantismo que insiste em se entranhar na vida pública brasileira emergiu mais uma vez em uma sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo no início de outubro. O episódio envolve uma tentativa de censura e ameaças à deputada Isa Penna, do PSOL, que subiu à tribuna para protestar contra um projeto que exclui atletas transgênero de competições esportivas. Todos sabemos do excelente trabalho que a parlamentar desenvolve, iniciado antes mesmo de ocupar uma vaga no Parlamento paulista, para garantir direitos aos chamados grupos minoritários.  

A gritaria deu-se quando a deputada, em um esforço para sensibilizar os colegas, lançou mão da leitura do poema “Sou puta, sou mulher”, de Helena Ferreira, que trata do poder feminino diante do machismo e de uma sociedade patriarcal que insiste em tratar as mulheres como objeto e invisíveis. Alguns parlamentares interromperam a leitura sob argumentos de que a colega proferia palavras de baixo calão e envergonharia a Casa. Para coroar a truculência com que a trataram, um deles ameaçou ingressar com um pedido de cassação do mandato por falta de decoro.

 

Ora, era de se esperar que o deputado que ameaçou Isa Penna soubesse, até por desfrutar da mesma prerrogativa, que deputados e senadores possuem imunidade material, ou seja, são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos proferidos no exercício do mandato. A quebra de decoro parlamentar, prevista tanto na Constituição quanto nos regimentos internos das casas legislativas, pode configurar-se por inúmeras condutas consideradas atentatórias à moralidade democrática, dentre as quais jamais se poderia pensar que estaria a leitura de um poema, de uma obra literária e artística. 

Por outro lado, a tentativa de calar a deputada e a radicalidade de intimidá-la com um pedido de cassação de mandato implicam uma forma de censura a ela e ao conteúdo do poema, que é, este sim, um ato inaceitável no plano constitucional. Os colegas que a ameaçaram cometeram um ato atentatório ao decoro parlamentar, na medida em que tal conduta fere frontalmente a moralidade constitucional. Moralidade que não deve ser tomada no plano individual, dos valores do bem viver pessoal, mas no plano político, ou seja dos valores do bem viver coletivo, estipulados na Constituição. E a nossa Constituição não só não veda, como estimula a divulgação e a produção de conteúdos artísticos como forma de expressão.

O fato de o poema conter um palavrão ou uma palavra considerada chula não o invalida como obra artística nem depõe contra a sua qualidade. Carlos Drummond de Andrade nos deixou um poema cujo título é justamente “A puta”. Pelos critérios desse grupo de deputados da Assembleia paulista, seria um poema indecente e chulo, e não a obra-prima que de fato é. A dificuldade que demonstram para compreender os direitos humanos é tal qual aquela que têm para o entendimento da arte e seus recursos estéticos.

Cabe lembrar que, em 2011, a propósito de declarações consideradas racistas e homofóbicas do então deputado Jair Bolsonaro, fui consultado por um jornal e adverti que ele, embora preconceituoso e incentivador de condutas fronteiriças ao nazismo, no exercício do mandato, não poderia ser punido civil e penalmente por questão de opinião, palavra e voto. Assim, sinto-me legitimado a fazer a defesa da deputada Isa Penna neste momento.

Se cabe punição neste episódio lamentável, deve ser àqueles que, ao tentar censurar um poema ou a sua divulgação, afrontaram um valor fundamental da democracia, que é o direito à livre circulação do pensamento de ideias e à livre expressão artística.

 Além disso, ao ameaçarem a colega com perda do mandato pelo fato de ela ter, no plenário, no exercício da sua imunidade e de seus direitos, se expressado por meio da leitura de uma obra literária, atentaram contra o decoro e poderiam, eventualmente, ter o mandato cassado. Procuraram, no interior de um espaço democrático, inibir a atividade parlamentar livre e atuaram contra o direito à livre expressão artística. Ou seja, cometeram duas faltas graves, passíveis de advertência ou punição. 

A democracia implica a observância de valores morais de tolerância e convivência que os deputados parecem desconhecer. Nunca é tarde para começar a aprender.

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