Haverá um depois e teremos de inventar a nova normalidade

Como será tudo depois? Terei meu trabalho? Poderei rever meus pais ou avós?

Espanha. Foto: AFP

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Hoje, saímos de casa pela primeira vez juntos desde 15 de março. Eu, minha esposa e meu filho. Todos no mesmo carro.

Até ontem isto era proibido, passível de multa. E algo tão simples quanto sair em família e ir até o drive thru de uma lanchonete nos emocionou.

A Espanha foi um dos países europeus mais afetados pela pandemia, mais de 27 mil mortos e 231 mil infectados. Durante mais de dois meses, atravessamos uma rigorosa quarentena que contou com a surpreendente adesão de boa parte da população.

Sentimos que ultrapassamos o pior. Durante vários dias, assistimos a cifras assustadoras, chegando a mais de 900 mortos diários. A histórias que nos chegavam desde Madri, o epicentro da pandemia no país, eram de cortar o coração: profissionais de saúde exauridos e que representam 15% de todas as vítimas, casas de repousos que perderam todos seus idosos e uma legião de pessoas desprotegidas, sem salário e à beira da miséria, somente aguardando a economia retornar à normalidade. Mas qual normalidade?

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Não houve um único dia em que não ouvi da boca de minha esposa a frase: “É surreal o que estamos vivendo”.


E, de fato, o sentimento era de estar vivendo em meio a um filme de terror ou de ficção científica, daqueles de um mundo pós-apocalíptico no qual as pessoas são forçadas a lutar pela sobrevivência.

O escritor norte-americano Cormac McCarthy escreveu o livro “A Estrada” em homenagem a seu filho. Este romance relata o desespero de um pai e seu filho para sobreviverem num mundo devastado pelo colapso climático. Precisam encontrar comida, abrigo e fugir de outros humanos hostis — canibais! — e há diálogos lacônicos, alguns altamente comoventes mesmo em sua brevidade. Pai e filho que dependiam um do outro para continuarem vivos, que davam sentido à existência um do outro.

Estas histórias sobre o fim do mundo são, quase todas elas, reflexões sobre nossas relações humanas. Quem estará conosco nestas horas? Mas também são indagações sobre o propósito da vida: por que estamos aqui? A nossa existência se resume a acordar, trabalhar, ganhar dinheiro, comprar, comer, beber, transar e dormir? O que há mais para além disto?

Alguns buscam respostas transcendentais, num Deus cujos mistérios jamais compreenderemos, outros buscam refúgio na Arte, nesta nossa criação coletiva que nos emociona, inquieta-nos, e engrandece-nos, e há quem busque a resposta dentro de si e em seu vínculo com os demais.

Sei que, para muitos de nós, este isolamento trouxe inúmeras dúvidas e muita ansiedade. Como será tudo depois? Terei meu trabalho? Poderei rever meus pais ou avós?

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Não pensei em nada disto enquanto dirigia pela orla da praia, revendo o mar depois de tantas semanas. Não pensava em nada, para ser bastante sincero. Cantava “Freedom” de Richie Havens, um hino de Woodstock, enquanto desfrutava desta tal liberdade que nos foi privada por causa de um vírus.

Mas só estamos na primeira semana da desescalada. Tudo mudou. Levaremos muitas semanas para entrarmos naquilo que chamam de “nova normalidade”, isto é, um novo mundo que mal podemos conceber como será.

Para o pai e o filho no livro “A Estrada” não havia esperança. A civilização havia acabado, viviam de fato o fim do mundo.

Mas, para nós, haverá um depois, e seremos nós quem teremos de inventar este novo normal.

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