Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

Hamilton Mourão não é saída para um Brasil democrático

Democracia é uma conquista do povo, alcançada mediante luta, sofrimento e, no caso brasileiro, muita dor

Mourão, vice-presidente (Foto: ABr)
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Em novo improviso (complementar ao tuíte escatológico), o capitão-presidente, falando no Rio de Janeiro a uma plateia de fardados, saiu-se com esta: “(….) E isso, democracia e liberdade, só existem (sic) quando a sua respectiva força armada assim o quer”.

Nada a estranhar, tratando-se o orador de quem é.

Estranhável e lamentável é que tenha recebido o apoio do general Hamilton Mourão (tido como agente moderador, ou “adulto”, na trupe palaciana, e sucessor presuntivo do capitão) e a bênção do general Augusto Heleno, de quem até aqui era justo esperar mais comedimento e menos afoiteza.

A democracia, e seu ente essencial, a liberdade – sem uma a outra fenece –, não são dádivas dos céus, nem muito menos mercês dos militares, mas conquistas do povo, alcançadas mediante luta, sofrimento e, no caso brasileiro, muita dor; plantinha frágil de caule frágil, a democracia precisa ser regada todos os dias e todos os dias protegida dos ventos e das intempéries, pois é a primeira vítima das crises políticas.

O ministro-chefe do Gabinete Institucional, chamado pelo capitão a falar com jornalistas, respalda o discurso tosco do presidente tosco com outro discurso tosco e fora de propósito. Após repetir o capitão, afirmando, também ele, que “No  Brasil, nós devemos às forças armadas a nossa democracia e a nossa liberdade (…)”,  descarta qualquer tom de polêmica nas palavras de seu chefe nominal, pois elas, diz o general Heleno, “foram feitas de improviso para uma tropa qualificada  [fuzileiros navais] e foram colocadas exatamente para aqueles que amam a sua pátria” (O Estado de SP, 8/3/19).

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Descontado o fato de que capitão e general perderam ótimas oportunidades de ficar calados, há de se perguntar: e quem é que não ama “sua pátria”, senhor ministro?  Será, por acaso, o presidente que presta continência à bandeira de outro país, ou o general brasileiro que vai fazer bico como vice-comandante em uma tropa estrangeira? Ou a coletividade militar que apoia a entrega da Base de Lançamentos de Alcântara aos EUA, em circunstâncias cercadas de opacidade, e que silencia, aceitando-a, a venda da Embraer (aliás, uma criação da FAB), cedendo à poderosa Boeing nossa tecnologia, inclusive a de ordem militar? Ou será que desamam a pátria os militares  que permitem que nossas forças armadas se transformem em retaguarda da estratégia militar do Pentágono?

Essas declarações, infelizes, falsas em seus fundamentos e sempre inoportunas, podem sugerir que as sandices nelas expressas refletem o pensamento majoritário, se não da caserna,  da oficialidade superior do Exército, o que não é menos ruim.

Em qualquer hipótese, são indicadoras da indigência do ensino professado nas escolas militares, de onde saíram o capitão e os generais que aí estão.

Afinal, que escolas são essas que produzem um oficial com as inegáveis desqualificações de Jair Bolsonaro?

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São escolas que desconhecem a História e o desenvolvimento das ideias políticas, desconhecem mesmo a formação de seu país e de suas instituições e o papel de cada uma.

Os militares falam muito em pátria e se gabam do monopólio de seu amor, mas o conceito que nutrem de pátria descarta elementos essenciais, como nação e povo. Pátria não é só território – que, aliás, o capitão queria ceder para abrigar uma base dos EUA em preparativos para a invasão da Venezuela e a balcanização de nosso continente. O conceito de pátria envolve os conceitos de nação e de povo, mas de qual nação e de qual povo as forças armadas se sentem mandatárias? Fazem parte da nação dos militares os brasileiros que não pensam como os militares de hoje? E os valores pelos quais se empenham foram-lhes ditados pelo povo, ou, sacados de onde não se sabe, são ao povo ditados por eles?

A história da República, para ficarmos nela, não registra o respeito a compromissos nem legalistas, nem libertários, nem democráticos de nossas forças. Basta lembrar a reincidência de golpes de Estado que desde 1899 interrompem a vida democrática e a legalidade, a começar pelo golpe de mão do marechal  Floriano Peixoto, assumindo sem legitimidade ou apoio constitucional a presidência da República na intempestiva sucessão do marechal Deodoro.

Até 1930 as forças armadas foram o esteio de uma oligarquia agrária reacionária, arcaica e saudosista da Casa Grande, alçada ao poder mediante eleições escandalosamente fraudadas. A triste lembrança desse ente e desse período é o massacre de Canudos, que a nenhum exército do mundo deve orgulhar.

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Mesmo a participação brasileira na II Guerra Mundial foi cobrada nas ruas pelo povo, por trabalhadores e estudantes liderados pela União Nacional dos Estudantes e por civis como Oswaldo Aranha, contra a conspiração pró-Eixo levada a cabo dentro do governo Vargas pelos generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.

A legalidade democrática vem sendo seguidamente violada pelas forças armadas; foram elas que implantaram a ditadura do Estado Novo e sustentaram a repressão mais vil; depuseram Vagas em 1954; tentaram impedir a posse de Juscelino em 1955 (e tentaram desestabilizar seu governo com as arruaças de Aragarças e Jacareacanga); tentaram impedir a posse de João Goulart em 1961 (à frente da intentona fracassada os ministros militares de Jânio – general Odílio Denys, brigadeiro Grum Moss e almirante Silvio Heck, e o marechal Cordeiro de Farias); e, finalmente (mas não necessariamente encerrando esta história),  rasgaram a Constituição de 1964 para impor  a ditadura que se prolongou até 1985, com seu deplorável rol de perseguidos, cassados, presos, torturados e assassinados.

Como se vê, nossas forças armadas têm muito o que explicar e, quando o fizerem, precisarão assumir também sua responsabilidade pelo governo Bolsonaro, que tudo lhes deve, inclusive a sobrevivência, como o próprio beneficiário já reconheceu de público, agradecendo os bons ofícios da corporação e do general Villas Bôas, comandante do exército ao tempo da campanha eleitoral.

Relembre-se que, ao contrário do que nos dizem o capitão e os generais, a liberdade e a legalidade foram neste país conquistas do povo contra ações militares, de que é exemplo a luta contra o Estado Novo. Na defesa da posse de Juscelino e João Goulart destacou-se o saudoso advogado Sobral Pinto esgrimindo a Constituição contra o golpismo do brigadeiro Eduardo Gomes, do general Juarez Távora e de figuras grotescas como o almirante Pena Boto. Em 1961, a Campanha da Legalidade foi liderada por um civil, o governador Leonel Brizola. As  campanhas pela Anistia e pelas Diretas Já, na agonia do mandarinato militar, foram lideradas por partidos e políticos com o amplo apoio da população.

O conceito de soberania é incompatível com o de tutela, com a qual as forças armadas pretendem, insistentemente, garrotear a vida nacional.  Na democracia moderna, todo poder resulta da soberania popular e nada a ele pode se opor e nada pode medrar sem sua seiva.

A preeminência das forças armadas decorre do monopólio da força; por isso mesmo elas não podem ter autonomia para seu uso.  Este deve estar, sempre, subordinado aos interesses da soberania, manifestados pelos seus órgãos de representação. A ausência de limites fere de morte a democracia.

A presença das forças armadas em país civilizado deve ser silenciosa, afastada a tropa das querelas da vida democrática, respeitosas do direito e das instituições e conscientes de que são uma reserva para ações extremas, improváveis mas que precisam ser consideradas, como a eventualidade de uma ameaça externa – ainda quando, como no caso brasileiro, não se conheçam inimigos. Fora daí, na paz, elas não têm papel a exercer, seja na vida política, seja na vida das instituições. Cabe-lhes o silêncio e o retiro.

Democracia tutelada é um oximoro.

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