

Opinião
Governo faz campanha para sacrificar nova geração de estudantes
O direito à educação é um princípio constitucional e é responsabilidade do governo criar condições favoráveis para essa realidade


Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos e José Isaías Venera*
A nova campanha do Exame Nacional do Ensino Médio — Enem 2020 —, lançada em 28 de abril pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC), lembra a forma como se fazia televisão no período da Ditadura Militar (1964-1985).
Durante, sobretudo, os anos de chumbo, depois que foi instituído o Ato Institucional n. 5 (AI-5), em 1968, até o final do governo do general Emílio Garrastazu Médici, em 1974, o Brasil aparecia na televisão como uma terra dos sonhos, enquanto, no mundo real, torturas e corpos enterrados em valas clandestinas eram o modus operandi sobre os críticos do governo, aqueles que lutavam pela volta da democracia e pelo direito à liberdade de expressão. Médici chegou a declarar em 22 de março de 1973: “sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho”.
Na versão atual do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), não seriam mais os jornais, e muito menos o noticiário da Globo, que o levariam a dormir sossegadamente, mas as campanhas de seu próprio governo. Enquanto o mundo vive uma crise humanitária em consequência da pandemia causada pelo coronavírus, a nova campanha do MEC explora a ideia de que “a vida não pode parar”, ao estilo de um discurso de motivação, com frases como “dias melhores virão” e um sorriso estampado no rosto.
Os atores são jovens, com aparência de “bem nascidos”, em seus quartos super equipados: iPhones de última geração, tripé de apoio para gravações, MacBook, mesa de estudos, estante com livros, uma ou mais bandeirinhas do Brasil no cenário, faltando apenas o símbolo da CBF para demarcar bem o público que poderá estudar em casa e assim se proteger do perigo iminente. Uma realidade bem diferente da maioria dos brasileiros. Ao seu público, a proteção; aos outros, as valas comuns, ou melhor, o sacrifício de não participar do Enem e estudar, já que em muitos lares faltam condições materiais, como espaço físico independente, internet ou velocidade suficiente para as demandas de um ensino a distância.
Na campanha, não há menção à crise, seja ela econômica ou humanitária. O único vestígio é a fala “a vida não pode parar”, que deixa subentendido que tem algo estranho no momento, mas funciona, ao contrário, como uma convocação ao trabalho e à volta à normalidade da vida. Isso fica mais notório com a primeira fala: “E se uma geração de novos profissionais fosse perdida? Médicos, enfermeiros, engenheiros, professores. Seria o melhor para o nosso país? A vida não pode parar”.
O governo tenta sustentar a narrativa de que se faz muito barulho por nada, já que, para o presidente, a pandemia trata-se de uma “gripezinha”, apesar de mais de 100 mil infectados e quase 10 mil mortos.
Sustentando essa narrativa de que o país não pode parar, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, confirmou a realização do Enem para os dias 1º e 8 de novembro. Com o isolamento social e a paralisação nas escolas, muitos alunos, sobretudo do setor público, estão sem aulas. Diferente dos alunos da iniciativa privada, em que tanto os colégios quanto os alunos têm mais condições para criar ambientes favoráveis à virtualização das aulas.
A decisão do governo ignora a realidade de grande parte dos secundaristas, prejudicados com a falta de infraestrutura e tecnologia para assistir as aulas em casa, o que não é diferente também da realidade da maior parte das escolas públicas que não oferecem condições favoráveis aos professores para virtualizar as aulas.
Em reunião virtual com senadores no dia 5 de maio, Weintraub declarou que o “Enem não foi feito para corrigir injustiças, mas para selecionar”. O ministro tornou explícita a compreensão de educação deste governo, de estar no lado dos mais favorecidos economicamente. Corrigir injustiças significaria reduzir a desigualdade social e, para isso, os recursos públicos precisariam ser destinados para políticas de inclusão. Para o governo atual, o Enem não é uma porta de entrada inclusiva.
A crise em que o mundo vive em consequência da pandemia favorece a seleção que mais agrada ao atual governo, de filtrar a entrada para aqueles que estão em posição mais favorável. Essa decisão do MEC de não adiar o Enem prejudica o povo mais pobre, tornando mais distante a possibilidade de um futuro melhor, com mais oportunidades. O governo, ao contrário do que a campanha anuncia, ceifa uma geração de novos estudantes que vê nos estudos a possibilidade de emancipação econômica e social. A mensagem de que é preciso “reinventar-se” passa a responsabilidade para o jovem. Em outras palavras, repete o discurso do presidente: “e daí?” se há estudantes secundaristas sem condições para os estudos, “reinvente-se”.
A entrada para o ensino superior e o direito à educação, independente da modalidade presencial ou ensino a distância — incompatível com a educação básica e que não pode ser confundido com as atividades pedagógicas remotas adotadas por algumas escolas neste momento de excepcionalidade —, é um princípio constitucional e é responsabilidade do governo criar condições favoráveis para essa realidade.
Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda em Sociologia e Ciências Políticas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE).
José Isaías Venera é jornalista, doutor em Ciência da Linguagem pela Unisul e professor dos cursos de comunicação da Univille e Univali, em Santa Catarina.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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