Gustavo Freire Barbosa

[email protected]

Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Glenn Greenwald e a armadilha da democracia vulgar

A defesa da democracia às custas da democracia é uma armadilha a serviço do bolsonarismo

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

Glenn Greenwald, jornalista fundador do The Intercept Brasil, foi às redes para criticar as duras decisões do ministro Alexandre de Moraes em resposta à turba bolsonarista que vandalizou Brasília no último dia 08. Além das detenções dos vândalos e do desmantelamento dos acampamentos golpistas, Moraes determinou o afastamento de Ibaneis Rocha do cargo de governador do Distrito Federal e ordenou as prisões de Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro e secretário de segurança de Ibaneis, e do comandante da Polícia Militar do DF. Mais recentemente, incluiu o ex-presidente como investigado no inquérito que apura os atos golpistas.

“Existe agora, ou já existiu, uma democracia moderna onde um único juiz exerce o poder que Alexandre de Moraes possui no Brasil? Não consigo pensar em nenhum exemplo sequer próximo”, afirmou Greenwald em sua conta no Twitter.

Realçou, ainda, que uma das “maiores ironias da popularidade de Moraes entre a mídia corporativa e a esquerda” está no fato de ter servido como Ministro da Justiça de Michel Temer, responsável por sua indicação ao STF. Temer, como se se sabe, golpeou Dilma Rousseff em 2016, militarizou o governo, aprovou a Emenda do Teto de Gastos e inspirou Bolsonaro a dar continuidade à rapina da “Ponte para o Futuro”.

A Vaza Jato, série de reportagens do The Intercept Brasil que desnudou a operação Lava Jato ao expor as mensagens trocadas entre o ex-juiz Moro e procuradores da república, já seria suficiente para que a História dedicasse algumas de suas páginas a Greenwald, já consagrado quando tirou das sombras a insólita parceria entre Moro e Dallagnol: foi ele o maior responsável por fazer chegar ao público a documentação vazada por Edward Snowden sobre o cabeludo programa de espionagem global dos Estados Unidos.

Mas Greenwald, como todo ser humano, também erra. Em outubro de 2020, deixou o The Intercept após não conseguir publicar um artigo em que criticava Joe Biden, então candidato presidência dos EUA contra Donald Trump. Afirmando que os editores do site violaram seu “direito contratual de liberdade editorial”, acusou-os de censura e se despediu do veículo.

Para além de questões contratuais, Greenwald achou conveniente oferecer munições para o trumpismo em meio a uma acirrada campanha eleitoral, crendo, ainda, que seu “direito contratual” o colocava acima da linha editorial do The Intercept. Dois meses depois, trumpistas, insuflados pelo seu líder – que, dentre outras coisas, questionava o sistema eleitoral e alegava ter ocorrido fraudes nas urnas – invadiram o Capitólio.

Greenwald parece cair em alguns dos vícios mais comuns em juristas: o democratismo vulgar, a crença na neutralidade do direito e a insistência em achar que a política deve ser explicada através dele, e não o contrário. A partir daí, a democracia vira um valor abstrato.

Prezar pela “estabilidade das instituições democráticas” é seu valor supremo, mesmo que às custas da própria democracia.

Carl Schmitt, filósofo e também jurista, questionou essa perspectiva. Segundo ele, soberano é quem decide sobre o estado de exceção. Assim, a verdadeira essência do direito se expressa não em seu cumprimento retilíneo, mas em seu descumprimento. Uma vez que o direito é formatado pela força, e não o contrário, sua aplicação é definida por quem acumulou maiores e melhores condições políticas de fazê-lo.

Qual o contexto em que nos encontramos? Um candidato derrotado, com uma expressiva base social e apoio considerável nas Forças Armadas e nas polícias militares de todo o Brasil, viu sua retórica golpista atingir seu ápice em 08 de janeiro, dia em que esta base resolveu fazer terrorismo em Brasília e vandalizar os três principais prédios públicos do país.

Para que fosse possível chegar a esse ponto, foi necessário colonizar algumas instituições além das Forças Armadas e das forças de segurança, como a Procuradoria-Geral da República, cujo titular vem se omitindo quanto aos crimes do ex-presidente, blindando-o de qualquer responsabilização legal.

Há, portanto, um grupo que joga fora da institucionalidade, querendo quebrá-la para que se concretizem seus intentos golpistas e reacionários. A omissão de Augusto Aras é só uma peça no mosaico das intenções bolsonaristas. Como na política não existe vácuo, o vazio – inconstitucional – criado pelo PGR foi ocupado pelo STF.

Suponho que, para Greenwald, a Advocacia-Geral da União deveria ter solicitado não ao STF, com histórico de enfrentamento ao golpismo, mas ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) – corte com competência para julgar governadores – o afastamento de Ibaneis, ao passo que a Câmara Legislativa do Distrito Federal tocaria, na santa paz, seu processo de impeachment. É este o script normativo que se apresenta a princípio, afinal.

É no STJ que estão algumas franjas do bolsonarismo, como o ministro João Otávio Noronha, cuja relação com Bolsonaro, segundo o próprio ex-mandatário, foi “amor à primeira vista”. Imagino o pedido da AGU sendo distribuído para Noronha. Imagino, também, como uma decisão contrária, com apoteóticas referências à “liberdade”, colocaria querosene na chama do golpismo, legitimando os bolsonaristas a prosseguir com a destruição, agora com o aval do Judiciário.

Os “poderes imperiais” de Moraes já foram referendados pelo colegiado do STF. O problema, porém, está em acreditar que o neofascismo golpista será derrotado por meio das margaridas neutras do Estado Democrático de Direito, como se os limites e interpretações deste não estivessem condicionados à correlação de forças da política  Por isso é um erro desprezar a análise concreta de uma situação concreta e imputar a Moraes a pecha de inimigo abstrato, retomando seu passado para questionar o papel que assume no presente.

Tudo o que o bolsonarismo quer é que seus adversários sejam “democratas”. A depredação de Brasília, assim, seria apenas a largada. Sob a benção da liberdade e da democracia.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo