Opinião

Gerônimo e a grande safra – III

A pedido de alguns leitores, resolvi contar o final do ovelheiro e cabralino Gerônimo da Silva Santos, 28, de Cabrobó (PE)

Foto: Câmara dos Deputados
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Porra! É tanta merda que caiu sobre mim em 2023, que, cabalisticamente, a gente tende a pensar que a virada do ano trará dias melhores. Nada. Apostei todas as fichas em que os maus acontecimentos dos últimos quatro anos vinham do período capiroto e que, dada a volta de um estadista que pensa na bem-aventurança dos pobres, mesmo não estando (ainda) nessa condição social, por extensão, o meu pensamento de esquerda faria sobrar algumas rebarbas à minha vida pessoal. 

Mesmo, todas as noites, passando pela Redação do “Dominó de Botequim” (livro esgotado, edição do autor corajoso e irresponsável, 2016), e orando aos nossos padroeiros Ariano Suassuna, Darcy Ribeiro, Luiz Melodia, Beth Carvalho e outros, Lula eleito, a coisa não vai.

Então, por incrível, a pedido de alguns leitores, resolvi contar o final do ovelheiro e cabralino Gerônimo da Silva Santos, 28, Cabrobó (PE). Órfão de mãe e pai, continuara, filho mais velho, trabalhando dia e noite naqueles vinte hectares com o rebanho, para patrocinar os estudos das meninas, agora vivendo fora da lavoura, em Salgueiro (BA).

De lá, a cada, mais ou menos, seis meses mandavam uma mensagem pro irmão, que respondia solícito e com lágrimas. Como painho fora capaz de manter a família ali, unida dentro daqueles 20 hectares de cabras, cabritos e ovelhas? Milho, cuscuz, cachaça da roça, forró, estrelas no céu, noites sossegadas, barulho dos bichos, mostrando-se seguros.

Na última mensagem delas recebida. O que mais temia:

– Gerô. Tudo bem? Aqui Maria Rosa. Bem também. Estou trabalhando de balconista em uma loja agropecuária. De vez em quando, o patrão deixa eu ligar para a nossa irmã Chiquita (Francisca). Está bem. É caixa numa farmácia.

Providenciei de o Doutor Tiago Mestreculo Leite, especialista em soja, visitasse você para discutirem a possibilidade de transformar a propriedade de pastagem das cabras em soja. Rende muito mais. Vai te ligar pra marcarem. Diz que em quatro anos estaremos ricos. Mate e asse uma ovelha pra ele. Não seja grosso. Receba bem a ele. Conhece bem Petrolina e já trabalhou em São Paulo. O Doutor Mestreculo pode ser o nosso futuro. Beijos. Marô.

Depois de ler a carta, Gerônimo se pôs a pensar. Primeiro, reviveu todo o passado quando todos os dias, bem cedinho, alvorecer ainda lutando pra se mostrar à Terra, ele acompanhava o pai pra tirar leite, primeiro das cabras e, em seguida, das ovelhas.

– Tavam cheias hoje, né pai?

– Oh, filho, digo que, mesmo a gente tendo um pasto bem tratado, suculento, um tiquinho de ração ajuda. Vá buscar mais dois baldes vazios pra não pesar muito e entornar a ordenha.

E assim, sucessivamente, vinham as lembranças que, nele, formavam a ideia de sua responsabilidade de continuar ali, naquela lida, manter sua sobrevivência e a de seus irmãos.

Adiaria o máximo que pudesse adiar a conversa com o Doutor Mestreculo. E, também, passaria a pensar nele mesmo, Gerônimo. Casaria, teria filhos, como os criaria, como seu pai o fez, ou como a soja de Mestreculo poderia fazê-lo? Estava confuso. Como desejava e se emocionou Elis Regina (data indeterminada, provável entre 1976/80).

E se assim corre a vida de Gerônimo, assim como corre a do colunista que a vocês, humilde, se dirige: caçando a mim mesmo e procurando uma musa espanhola que o faça escrever alguns versos de amor, como fizeram Sá, Rodrix e Guarabyra, em 2002. 

Inté os pastos entre carneiros e cabras pastando solenes em nossos jardins.  

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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