

Opinião
Geopolítica da crise mundial: declínio da hegemonia americana e ascensão chinesa
Nosso país não cabe no quintal de ninguém. Um país gigante não pode alinhar-se a nenhuma potência, nem aos Estados Unidos, nem à China


“Quando a China despertar o mundo inteiro tremerá”. Profecia atribuída a Napoleão Bonaparte
Que consequências a crise do coronavírus terá para o quadro geopolítico, em especial para as posições dos Estados Unidos e da China? Eis aí uma questão obscura e repleta de incertezas, mas isso não é motivo para ignorá-la. Afinal, questões essenciais são mesmo obscuras e incertas. Os temas claros e previsíveis são os secundários ou aqueles já de alguma forma equacionados.
Quando o novo vírus apareceu em Wuhan, órgãos importantes da mídia ocidental, particularmente nos Estados Unidos, receberam a notícia com mal disfarçada satisfação. Larga divulgação foi dada a especialistas e comentaristas que previram graves dificuldades para a China. Falou-se até em ameaça ao poder do presidente Xi Jinping, que seria fatalmente responsabilizado pela crise de saúde pública.
Não foi o que se viu, entretanto. Severa e radical, a reação chinesa surtiu efeito rapidamente e conseguiu conter, por enquanto, a propagação do vírus no país. O custo foi alto em termos econômicos e sociais, mas os resultados vieram em pouco tempo, surpreendendo especialistas ocidentais e frustrando aqueles que esperavam a eclosão de uma crise política na China.
A resposta chinesa não foi inteiramente surpreendente para mim. Conheço um pouco esse grande país em razão de ter lá residido por mais de dois anos, quando exerci o cargo de primeiro vice-presidente brasileiro do Novo Banco de Desenvolvimento estabelecido pelos BRICS em Xangai. Também tive contato frequente com autoridades e funcionários chineses nos oito anos em que trabalhei na diretoria do FMI em Washington.
As minhas observações sobre a China estão registradas em livro que publiquei no final do ano passado: O Brasil não cabe no quintal de ninguém (editora LeYa). Os chineses combinam capacidade de trabalho com disciplina. Atuam de forma organizada e coordenada sob comando do Estado. O indivíduo é parte de uma engrenagem maior e aceita essa realidade como natural. A economia e a sociedade são rigorosamente planejadas. Tendo tido experiência prévia recente com epidemias graves, a China visivelmente dispunha de um plano de contingência, que foi posto em prática com velocidade fulminante. Erros foram cometidos, sem dúvida, mas a recuperação impressiona.
Em contraste, a resposta nos Estados Unidos e na maior parte do Ocidente foi confusa, claudicante, pouco eficaz. Na comparação com os chineses, americanos e europeus saíram-se mal no combate à pandemia. O saldo por enquanto é totalmente oposto ao que previam (ou desejavam) alguns especialistas ocidentais. A China sofre com a crise, como todos, mas começa a sair dela com prestígio basicamente intacto.
Isso para desespero dos Estados Unidos. Conheço os americanos até melhor, e também registrei as minhas impressões sobre eles no livro recém-lançado. Um traço da psicologia americana: a preocupação ou, melhor dizendo, a obsessão em ser o número 1. Nos últimos dez, quinze anos, os americanos assistem com preocupação a ascensão da China. Em outras épocas, a rivalidade era com a União Soviética, depois foi com o Japão. Mas, já há algum tempo, a China é vista como uma grande ameaça, provavelmente sem precedentes, à liderança mundial a que os americanos tanto se apegam. Donald Trump partiu para a ignorância, mas o não foi ele que inventou o problema. O nervosismo é generalizado no establishment americano, e não é de hoje que sentimentos anti-chineses predominam entre republicanos e democratas.
A posição americana é mais difícil do que talvez pareça. A crise do coronavírus e a reação atabalhoada à pandemia constituem, na verdade, o terceiro grande choque para a hegemonia dos Estados Unidos em um período de pouco mais de dez anos. O primeiro abalo foi a grande crise financeira internacional de 2008-2010 que teve origem, como se sabe, no sistema financeiro americano. Essa crise abalou não só a economia, mas também o prestígio dos americanos e a confiança nas políticas financeiras e econômicas por eles preconizadas. Até os satélites mais fiéis começaram a ter algumas dúvidas.
A forma como a crise financeira foi enfrentada preparou o terreno para o segundo grande abalo. Prevaleceu a percepção de que o governo deu prioridade a salvar os grandes bancos, abandonando a classe média e os mais pobres à própria sorte. O ressentimento e a frustração com a concentração da renda e da riqueza deram lugar à ascensão do populismo de direita que conduziria à eleição de Trump e solaparia, ainda mais, o prestígio e a influência dos Estados Unidos.
Não se deve perder de vista que a presidência de Trump representa uma descontinuidade importante nas relações internacionais dos Estados Unidos. Modificou-se a maneira de exercer o poder americano. O imperialismo americano, antes disfarçado por camadas variadas de ideologia, valores “universais”, sedução e soft power, passou a ser exercido de forma nua e crua. America first foi o lema de Trump desde o início e, de forma ainda mais desabrida, durante a pandemia.
Essa forma de atuar é prejudicial aos Estados Unidos, pois o poder se fragiliza quando depende apenas da força e da intimidação. Tosco como é, Trump não compreende a importância estratégica da hipocrisia. Certamente nunca leu La Rochefoucauld para quem “a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude”. Ao descartá-la, Trump fragiliza a hegemonia americana e aumenta as resistências a ela. Munido das suas intuições e improvisações, superestimando provavelmente o poder americano, Trump vem fazendo inimigos e afastando até aliados tradicionais como a União Europeia e o Canadá. E trata com indisfarçado desprezo os seus satélites, inclusive o lacaio de Brasília. Perdeu a confiança dos seus interlocutores e se enfraqueceu para a disputa primordial com a China.
Trump tem certamente seus pontos fortes ou não teria chegado à presidência dos Estados Unidos. Mas o que mais chama a atenção é o seu despreparo, que apareceu de forma escancarada durante a pandemia. A sua tendência é governar na base dos rompantes e do improviso, sem respeitar a opinião dos cientistas e especialistas. Cerca-se de auxiliares medianos, que se destacam mais pela lealdade ao chefe do que por sua competência profissional e política.
Quando veio a emergência, o primeiro instinto de Trump foi negacionista, minimizando o tamanho da ameaça. Preocupado com a sua reeleição, não quis inicialmente aceitar a necessidade de medidas drásticas de distanciamento social. Entrou em choque com os governadores dos Estados mais atingidos, buscando transferir a culpa pelo impacto das medidas preventivas sobre a economia a e o emprego. Resultado: os Estados Unidos demoraram a reagir ao desafio e se tornaram em pouco tempo o “epicentro” da pandemia. A economia mergulhou na pior recessão desde os anos 1930, com o desemprego aumentando de maneira rápida e alarmante.
A semelhança entre Trump e Bolsonaro, registro de passagem, salta aos olhos. Não apenas porque o segundo imita o primeiro, mas também porque ambos são o produto de circunstâncias sociais até certo ponto semelhantes – mal estar social profundo, classes dirigentes medíocres e sem espírito público, concentração da renda e o predomínio avassalador da ignorância. O sujeito que hoje dispõe de algum conhecimento deve cercar-se de todos os cuidados. Se não o fizer, corre o risco de ser caçado a pauladas, feito ratazana prenhe. A expressão é de Nelson Rodrigues, aliás o grande profeta mundial do triunfo do idiota. Mesmo ele, ficaria impressionado, imagino, com a extensão que o fenômeno adquiriu até mesmo em países desenvolvidos.
Mas não quero me desviar do assunto. Volto ao quadro geopolítico. Os Estados Unidos têm muita gordura para queimar. Apesar das decepções e dos estragos dos últimos anos, os americanos conservarão por muito tempo influência em todas as partes do mundo. O declínio da sua hegemonia será lento e gradual, como foi o declínio da hegemonia inglesa entre o final do século 19 e a Segunda Guerra Mundial.
A China, por sua vez, tem suas vulnerabilidades e limitações. Trata-se de um país em desenvolvimento, de proporções gigantescas, mas nível médio de renda. Não domina sequer a Ásia, nem mesmo o Leste da Ásia. Outros países importantes resistem, com apoio americano, à ascensão chinesa. Japão, Austrália e Índia, por exemplo, têm interesses econômicos no relacionamento com a China, mas não confiam nela. Com um pouco mais de habilidade em Washington, não seria impossível reduzir os chineses a um certo isolamento, mesmo no seu continente.
O cenário mais provável para as próximas décadas é de um mundo crescentemente multipolar, marcado por erosão gradual, mas persistente, da influência e do peso relativo dos Estados Unidos e, em contrapartida, poder e presença crescentes da China. O eixo do poder econômico e político continuará se deslocando do Atlântico Norte para o Leste da Ásia – processo que pode ser acelerado por choques como o que estamos experimentando em 2020.
Uma palavra final sobre o Brasil. Nosso país, repito, não cabe no quintal de ninguém. Um país gigante não pode alinhar-se a nenhuma potência, nem aos Estados Unidos, nem à China. Mas é particularmente inoportuno, do ponto de vista estratégico, embarcar na canoa de uma potência declinante. E, pior, complementar esse alinhamento com gestos gratuitos de hostilidade à China. O Brasil precisa, ao contrário, manter as suas opções em aberto e relações de amizade com todos os países. De forma condizente com suas proporções continentais e com um mundo cada vez mais multipolar, a nossa política externa precisa voltar a ser independente e de caráter global.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Quais os riscos de tomar hidroxicloroquina sem estar doente, como Trump?
Por RFI
UE apoia OMS após ameaça de Trump de cortar financiamento
Por AFP
Trump ameaça retirar EUA da OMS em um prazo de 30 dias
Por Deutsche Welle