Célia Xakriabá

Primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais

Opinião

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Genocídio legislado

Precisamos dizer não à tese do marco temporal, a ameaçar a sobrevivência dos povos indígenas e a preservação da natureza

.Foto: Thiago Gomes/Agência Pará
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No chão da luta, lado a lado com o movimento indígena, barramos a PEC 215, marchamos diversas vezes pela esplanada e sempre ecoamos com nossos maracás a urgência pela demarcação de nossos territórios. A maior ameaça até agora para a garantia de nossas terras, para a manutenção da vida e dos biomas, é a tese do marco temporal, que tenta reduzir o direito à demarcação apenas aos territórios ocupados pelos povos indígenas até a Constituição de 1988. Um absurdo, a violar o nosso direito originário às terras, a manutenção da nossa cultura e a garantia de nossa existência.

Mais uma vez ele será pautado no Supremo Tribunal Federal, que tem a competência para decidir sobre o tema. Nossa posição é clara: marco temporal, não! E, como sempre, estaremos mais uma vez em marcha e em luta contra uma decisão que ameaça até mesmo a vida na Terra. Para além do esforço dos povos indígenas, é preciso sensibilizar toda a sociedade sobre a importância de dizer não ao marco temporal. Quando preservamos nossos biomas, estamos garantindo um futuro para todos e todas.

É momento também de fazer essa ­disputa na institucionalidade, uma vez que a bancada ruralista na Câmara dos Deputados pretende levar adiante um projeto de 2007 que tenta transformar em lei o marco temporal antes de o STF analisar o tema. Uma clara tentativa de retirar a competência do Judiciário e provocar o que tenho chamado de genocídio legislado. O PL 490/07 não é pauta recente, mas na última semana houve um pedido de urgência para que ele seja levado ao plenário e apreciado.

O projeto é claramente inconstitucional, por violar os direitos dos povos originários. Trata-se de uma iniciativa que permite a retomada de “reservas indígenas” pela União, que usa critérios completamente subjetivos e coloca em risco ao menos 60 territórios. Falamos aqui de cerca de 70 mil pessoas e de uma área total de 396,3 mil hectares.

Além disso, permite a implantação de mineração e de outros grandes empreendimentos em terras indígenas, ignorando completamente o nosso direito à consulta livre, prévia, informada e consultiva. Direito esse garantido por legislação internacional, especificamente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT. Ainda mais grave é a possibilidade de aprovar uma lei que legaliza os garimpos ilegais nas terras indígenas e abre brechas para destruir a política de “não contato” com povos isolados. A justificativa, neste caso, é que o contato pode ser feito com a finalidade de “interesse público”. Pergunto-me, então, qual seria esse interesse público com as tribos isoladas?

Todo território indígena que conheço no Brasil só foi demarcado depois da morte de alguma liderança. Vocês sabem o que é isso? Os povos indígenas são os únicos que têm de pagar por seus direitos, e o preço é o nosso sangue. A comoção nacional que teve o caso da crise no povo ­Yanomâmi durou mesmo muito pouco, foi só de fachada, porque, agora, poucos meses depois, vejo os representantes do povo brasileiro tentando continuar o genocídio. O PL 490 é premiar os estupros das meninas Yanomâmi. O PL 490 é parabenizar os ladrões de terra. O PL 490 é dizer que os povos indígenas assassinados em conflitos fundiários morreram em vão e o Estado perdoa seus assassinos.

Assassino não é só aquele que dispara uma arma de fogo. Sofisticaram as armas, mas a intenção de matar continua a mesma desde 1500. Vejo, hoje, muitos parentes sentirem medo da caneta do mesmo jeito que têm das balas, porque sabem que, aqui dentro desta casa, a caneta também é uma arma de fogo que assina morte.

Exterminar o direito dos povos originários é exterminar o seu próprio futuro. Enquanto houver povos indígenas, enquanto houver a voz de uma mulher indígena dentro do Congresso Nacional, ouçam o grito de socorro da mãe natureza. Ouçam antes que ela se cale, aí começarão os nossos gritos de dor. Não deixem que seja tarde demais. Reflorestem suas mentes e seus corações. O futuro é agora, sem demarcação não há democracia. Sem demarcação não há futuro!

Muitos de vocês dizem que somos atrasados, mas atrasado, para mim, é um país que demorou 500 anos para eleger indígenas para o Congresso, que levou 523 anos para ter uma mulher indígena presidindo uma comissão, 523 anos para ter um Ministério dos Povos Indígenas e uma mulher indígena à frente da Funai. Atrasado é o país que quer votar retrocessos e implementar um projeto programado de ecocídio.

O PL 490, para nós, povos indígenas, é um projeto anticivilizatório. •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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