

Opinião
Genocídio é um fato político
‘Como seria desejável que a matança a que estamos submetidos nos ensinasse a gravidade das escolhas’, escreve Milton Rondó


“O conhecimento é sem limites. Portanto, há apenas minúscula diferença entre aqueles que sabem muito e os que sabem muito pouco.”
Leon Tolstói.
Definir inteligência não é tarefa fácil. Entretanto, algumas componentes podem ser individuadas: o desejo de aprender; a curiosidade de entender; a consciência de que tudo, no universo, está relacionado.
Ao vivermos um genocídio no Brasil, muitas reflexões ocorrem. Aqui, mais de três mil vidas vêm sendo perdidas diariamente. Na Austrália, já não se registram mortes por Covid.
Muitas disciplinas podem nos ajudar a entender os fatos políticos e um genocídio é – por definição – político.
Leonardo Boff, em Brasil, concluir a refundação ou prolongar a dependência, refere-se à etimologia da palavra conhecer: “Conhecer…é um procedimento concreto, presente na etimologia da palavra ‘conceito’ ou ‘connaître’ (conhecer, em francês), que significa ‘nascer junto’ com a realidade, entrar em comunhão com a realidade…Conhecer implica, pois, fazer uma experiência, e a partir dela ganhar consciência e capacidade de conceitualização.”
Como seria desejável que a matança a que estamos submetidos nos ensinasse a gravidade das escolhas, principalmente as políticas.
Boff enfatiza a vivência como raiz do conhecimento: “Parte-se daquilo que já São Francisco e Mao Tse-Tung ensinavam: aprende-se fazendo. A prática, portanto, é a fonte originária do aprendizado e do conhecimento humano, pois o ser humano é, por natureza constitutiva, um ser prático”.
Nisso reside ‘a dor e a delícia’ do conhecimento: ele se transmite e talvez seja essa a razão primordial da nossa vida em sociedade.
No entanto, não supera – sequer pretende – a experiência dos indivíduos, dos grupos sociais ou das nações.
O diálogo intercultural representa, de fato, um dos maiores desafios de diplomatas, artistas e de todos aqueles que se interessam pelas trocas entre pessoas e povos.
Um exemplo dessa dificuldade pôde ser visto na própria Celebração da Paixão de Cristo, na Sexta-Feira Santa, no Vaticano.
Ao Pregador da Casa Pontifícia, Cardeal Raniero Cantalamessa, coube a homília.
Franciscano como Boff, o recém-promovido Cardeal, corretamente identificou que as divisões na Igreja são de natureza política.
Porém, ao não ter-se aprofundado o tema, simplesmente condenou – de forma apriorística – a ligação intrínseca existente entre fé e política.
O desalento do Papa Francisco, argentino, não europeu, que como o outro Francisco, o de Assis, superou o determinismo cultural, era visível: corpo e voz alquebrados. Foi traído como o próprio Cristo, por alguém de sua mais próxima convivência, um franciscano nascido no Norte abastado, o qual não fora capaz de superar os claustros da própria cultura. Erroneamente, o purpurado deixou de levar em conta as conclusões universais do Concílio Vaticano II, que propugnaram a opção preferencial pelos pobres.
Por ironia, o Cardeal perdeu os pontos cardeais (desculpem o trocadilho pobre): tanto o Sul quanto o Norte.
O franciscano, Leonardo Boff, indica-nos, na obra antes citada, um caminho de superação dos limites do conhecimento meramente teórico: “Esse conhecimento não é monopólio dos que passaram pelas escolas e se entregaram à leitura. É acessível a todos os humanos que têm uma prática de vida. O trabalhador manual, portanto, não precisa para aprender, memorizar uma quantidade ilimitada de conteúdos. O essencial é que aprenda a pensar sua prática individual e social, articulando o local com o global, e vice-versa, tirando dos vários conhecimentos um direcionamento estratégico e tático em sua ação transformadora.”
Como João, o discípulo que Jesus amava e que primeiro chegou ao túmulo e acreditou na Ressurreição, Boff entende que o verbo, para frutificar, precisa ser ação, encarnar-se: “O ato de conhecer, portanto, representa um caminho privilegiado para a compreensão da realidade. O conhecimento sozinho não a transforma, mas somente a conversão do conhecimento em ação. Entendemos por práxis exatamente esse movimento dialético entre a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão da ação transformadora em conhecimento. Essa conversão não muda apenas a realidade, mas muda também o sujeito, como Marcos Arruda enfatiza em várias de suas obras.”
O desafio brasileiro parece ser o da formação, do ensino, da cultura. Como atingi-lo? Múltiplas terão de ser as formas, para a transmissão dos conteúdos, em um país que – apesar das práticas manipuladoras da imprensa oligárquica que a uniformiza , empobrece e aliena – ainda mantém fantástica diversidade cultural.
Nesse sentido, Boff, tomando como parâmetro a China, muito adequadamente nota: “Bem disse o primeiro-ministro chinês Xi Jimping no seu discurso por ocasião do 19o Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, em 18 de outubro de 2017: ‘A cultura constitui a alma de um país e de uma nação. Se a cultura for próspera, o país se tornará próspero; se a cultura for forte, a nação se tornará poderosa. Sem um alto grau de confiança na cultura, sem uma prosperidade cultural, não alcançaremos a grande revitalização da nação. Há que persistir no caminho do desenvolvimento cultural […] e fomentar a dinâmica de inovação e criatividade cultural de toda a nação para construir um país culturalmente avançado. […] A confiança na cultura constitui a força mais fundamental, profunda e duradoura para o desenvolvimento de um país.”
Revoluções não se exportam, mas tampouco se fazem sem conhecimento de outros fazeres. A magia da cultura é saber o que somos e como os outros nos enriquecem e nós a eles, para que sejamos todos o que ainda não não somos.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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