

Opinião
Gado ilegal ainda escapa do controle no Brasil de Lula
O governo já dispõe das ferramentas necessárias para garantir rastreabilidade e monitoramento mais eficazes. Falta um mecanismo para integrar esses sistemas
O Brasil fez progressos importantes sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva para conter a destruição de suas florestas. Ainda assim, quando delegados internacionais e jornalistas chegarem à cidade amazônica de Belém para a COP30, muitos provavelmente perguntarão por que o seu governo não fez mais para enfrentar uma das principais ameaças às suas ambições climáticas: o desmatamento causado pela pecuária.
A pecuária é o maior fator responsável pela perda de florestas no Brasil. Muitas vezes ela é sustentada por trabalho forçado e invasões de terras indígenas, violações de direitos humanos que permitem que fazendeiros que derrubam florestas reduzam custos e aumentem lucros. A opacidade das cadeias de suprimento de gado no Brasil significa que seu couro e sua carne — com exceções limitadas — não podem ser considerados, de forma confiável, livres de desmatamento ilegal ou de violações de direitos que permanecem disseminadas no setor pecuário.
Não precisa ser assim. O governo Lula já dispõe das ferramentas de dados necessárias para estabelecer uma rastreabilidade e monitoramento mais eficazes no setor pecuário. É hora de colocá-las em prática.
Um relatório divulgado no mês passado pela Climate Rights International identificou casos recentes em que fazendas ligadas ao desmatamento, exploração laboral e/ou invasões de territórios indígenas venderam gado para as cadeias de suprimento de grandes frigoríficos — que, por sua vez, venderam couro para as cadeias de suprimento de importantes marcas internacionais de moda e calçados, como Adidas, Nike, Calvin Klein e H&M, entre outras.
Os frigoríficos brasileiros sabem que têm um problema. Alguns adotaram medidas relevantes para assegurar que não compram diretamente de fazendas envolvidas em desmatamento ilegal ou violações de direitos humanos. Mas, para cada fornecedor direto, muitas vezes há vários fornecedores indiretos. Fazendas cujos animais passam por uma ou mais propriedades intermediárias antes de chegar ao frigorífico — e dezenas de milhares desses fornecedores indiretos permanecem sem monitoramento. Como resultado, mesmo um frigorífico que compra apenas de fazendas “limpas” não pode garantir que parte daqueles animais não tenham sido criados em propriedades envolvidas em desmatamento ou violações.
Vários frigoríficos prometeram estabelecer novos sistemas de monitoramento para enfrentar essa lacuna. Mas essas promessas soam vazias. A capacidade das empresas de identificar seus fornecedores indiretos depende de todos os elos da cadeia concordarem voluntariamente em fornecer informações sobre todas as suas transações, algo que especialistas no setor pecuário brasileiro consideram altamente improvável.
A boa notícia é que o governo brasileiro possui ferramentas de dados que, se devidamente integradas, poderiam resolver em grande parte o problema. Entre elas incluem bancos de dados públicos que mostram se as fazendas específicas cumprem as leis de proteção ao meio ambiente, aos trabalhadores e aos povos indígenas. Incluem também um sistema não-público, o Guia de Trânsito Animal (GTA), que registra a movimentação de gado para fins sanitários. O que falta ao País, porém, é um mecanismo para integrar esses sistemas de forma eficaz e na escala necessária para garantir que as cadeias de suprimento estejam livres de propriedades não conformes.
De forma animadora, vários estados brasileiros — incluindo o Pará e Minas Gerais — desenvolveram sistemas com real potencial para fortalecer a rastreabilidade e o monitoramento. No entanto, esses esforços em nível estadual permanecem confinados às suas próprias jurisdições. E correm o risco de fragmentar o setor pecuário, com cadeias de suprimento mais limpas surgindo em alguns estados para atender mercados que exigem produtos livres de desmatamento, enquanto o desmatamento e as violações correlatas continuariam sem controle em outros lugares.
O governo federal é o único ente com acesso imediato a todos os dados necessários para uma rastreabilidade efetiva em escala nacional. Ao combinar o sistema GTA com as bases de dados de monitoramento de conformidade, o governo Lula poderia criar um mecanismo nacional de rastreabilidade e monitoramento para acompanhar a movimentação do gado em todo o país e avaliar a integridade das cadeias de suprimento de cada empresa. Segundo autoridades e especialistas, um mecanismo assim poderia estar em operação em poucos meses.
Entre os principais beneficiários de uma rastreabilidade e monitoramento nacionais estariam os pecuaristas que cumprem a lei e enfrentam concorrência desleal de outros que praticam crimes ambientais e violações de direitos humanos, reduzindo os seus custos, ao mesmo tempo em que elevam os riscos regulatórios para todo o setor em mercados externos chave.
Entre esses mercados estão os Estados Unidos, que proíbem a importação de bens produzidos com trabalho forçado, e a União Europeia, onde os próximos Regulamentos sobre Desmatamento e Trabalho Forçado restringirão produtos vinculados ao desmatamento e ao trabalho forçado. Sem melhorias significativas em rastreabilidade e monitoramento, as exportações do Brasil terão dificuldade para atender a esses requisitos.
Para além do comércio e do acesso a mercados, as consequências ecológicas do desmatamento contínuo devem ser uma preocupação primordial para os pecuaristas brasileiros e todos aqueles que compram seus produtos — e isso pesará nas discussões da COP30. Cientistas alertam que a Amazônia se aproxima de um “ponto de não-retorno”, em que a continuidade da perda de árvores interromperá o ciclo da água da floresta, secando vastas regiões, devastando a agricultura local e liberando enormes quantidades de carbono na atmosfera.
O governo Lula e as lideranças do setor enfrentam uma escolha: usar as ferramentas que já possuem para tornar as cadeias de suprimento transparentes e sustentáveis — ou permitir que práticas ilegais reduzam o acesso a mercados importantes e continuem empurrando o País e o mundo para mais perto de um desastre ecológico.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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