Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

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Futebol da exaustão

O atacante egípcio Salah, do Liverpool, jogou, entre janeiro e fevereiro, nada menos que seis partidas, aí incluídas aquelas pela seleção de seu país

Futebol da exaustão
Futebol da exaustão
(Foto: Oli SCARFF / AFP)
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Só posso acreditar que os tempos sombrios que estamos atravessando sejam os estertores desta fase do capitalismo, que perdeu o mínimo de sentido humano que pudesse ter.

O neoliberalismo não pode ser mais tratado como uma opção política. Esse sistema é uma perversão, que nos chega agora na forma de uma guerra pavorosa.

Em todos os setores da vida, os reflexos do neoliberalismo se fazem notar. No esporte, um dos sintomas é a queixa da insanidade gerada pelos calendários apertadíssimos. Para comportar a sanha pelo dinheiro, os jogadores são submetidos a uma quantidade de jogos que os leva à exaustão.

Vemos acontecer, todos ao mesmo tempo, campeonatos estaduais e nacionais, Copa, taças e torneios variados. Não tem mais para onde correr.

Na última semana o destacado ­Guardiola, ex-jogador e técnico espanhol hoje à frente do inglês ­Manchester City, foi indagado sobre isso e, desacorçoado, repetiu a fala de outros profissionais: “Já falei muito sobre calendário. Não vai mudar nada”. Me parece que isso equivale a dizer que, descontroladas, as programações só vão cessar com o esgotamento total.

Nas discussões sobre o assunto, foi citado o caso do genial atacante egípcio Salah, do Liverpool. Entre janeiro e fevereiro, o atleta jogou seis partidas com duração de 120 minutos, aí incluídas as partidas pela seleção de seu país, na briga pela classificação para a Copa do Mundo, que implicaram várias prorrogações e pênaltis.

Aos treinadores e às comissões técnicas resta remendar os times a cada rodada. A deterioração da qualidade das apresentações desagrada aos torcedores, confirmando assim as previsões do João Saldanha, que, muito tempo atrás, advertira: “Vão acabar com a galinha dos ovos de ouro”.

Outro fato comum provocado pelo desacerto das relações profissionais atinge os jovens que se destacam e passam a correr mundo em transações as mais desencontradas. A trajetória do excelente Gustavo Sauer, agora contratado pelo Botafogo, é um exemplo da sina dos jovens jogadores após passarem pelas divisões de base dos clubes brasileiros.

Tendo iniciado a carreira no Joinville, de Santa Catarina, ele foi emprestado – melhor não seria dizer alugado? – seguidas vezes. Passou por Paraná, Metropolitano (Santa Catarina), Gandzasar (Armênia), Daejeon Hana Citizen (Coreia do Sul), Botev Plovdiv (Bulgária) e ainda pelo Boavista (Rio de Janeiro) até chegar ao Botafogo. Impressionante.

Ao mesmo tempo, corre na Espanha o outro extremo da situação. O Atlético de Bilbao, que mantém a tradição de contar exclusivamente com jogadores bascos, tem em seu elenco os irmãos Williams, Iñaki e Nico, filhos de pais ganenses que chegaram à Espanha depois de uma jornada dura, que incluiu atravessar o deserto a pé.

Iñaki acaba de completar seis anos atuando em todas, exatamente todas as 217 partidas do time alvirrubro. Igualmente impressionante.

Por falar em movimentação de profissionais do esporte pelo mundo, viajei outro dia, no contexto de uma dessas reportagens que buscam relembrar aonde andam os grandes ídolos de tempos passados, e me surpreendi com o rumo dos companheiros espalhados pelo mundo.

Pude encontrar o querido amigo Ricardo Gomes, exemplo da nossa paixão pelo mundo da bola. Depois de vencer, como técnico, um problema cardíaco em pleno banco de reservas, ele voltou à França, agora trabalhando pelo Bordeaux.

Um dos casos mais curiosos é o do craque Palhinha, campeão por onde passou até ganhar o mundo com o São Paulo, no Japão. Mineirinho por excelência, havia, com seu jeito discreto, se tornado presidente do americano Boston City. Agora comprou um time, o Almeirim, da quarta divisão de Portugal.

Uma coisa que chama minha atenção é o fato de que vão rareando os jogadores que se tornam treinadores, principalmente no Brasil.

Me parece que, ao alcançar a independência financeira, eles, simplesmente, não se sentem impelidos a envelhecer na beira do campo, desrespeitados pela cartolagem imediatista, que pega pesado depois de duas ou três derrotas.

Com a bola rolando, a semana foi pródiga em emoções, com destaque para os brasileirinhos Vinícius Júnior e ­Rodrygo. Na sensacional vitória de virada do Real Madrid, por 3 a 2, sobre o ­Sevilla, no domingo 17, ambos arrasaram.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Futebol da exaustão”

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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