

Opinião
Fundamentalismo hipócrita
Aceito alegremente a pecha de pertencer à “extrema-esquerda abortista”, se este for o preço a pagar por defender pautas justas e progressistas


Quando o muro separa, uma ponte une/ Se a vingança encara, o remorso pune/ Você vem me agarra, alguém vem me solta/ Você vai na marra, ela um dia volta/ E se a força é tua, ela um dia é nossa/ Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando/ Que medo você tem de nós, olha aí
(Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro)
Reacionários de todos os matizes tentam convencer os brasileiros, sobretudo aqueles inclinados a votar no presidente Lula, de que o projeto petista é de “extrema-esquerda”. Quem, como eu, acompanhou Lula desde suas primeiras tentativas de se eleger presidente da República até sua primeira vitória, em 2002, deve lembrar-se do mal-estar gerado quando o então candidato lançou a Carta ao Povo Brasileiro, na qual se comprometia, como um bom reformista, a renunciar à utopia socialista.
Naquele documento, ele reafirmou, entre outras coisas, o seu compromisso com o controle da inflação e o equilíbrio fiscal. Prometeu até preservar o superávit fiscal o quanto fosse necessário para reduzir a dívida pública. Durante seu governo, manteve intocadas as elevadas taxas de juro que faziam (e ainda fazem) a festa dos banqueiros e rentistas. Muitos reacionários também acompanharam a transformação de Lula, mas insistem em repetir a mentira do “extremismo de esquerda” por absoluta má-fé.
O projeto de governo parecia singelo quando o presidente definiu sua prioridade: “Que todo brasileiro tenha direito a café da manhã, almoço e jantar”. Pois bem, nos seus dois primeiros mandatos presidenciais, Lula e sua equipe, com apoio maior ou menor do Congresso Nacional, conseguiram retirar o Brasil do vergonhoso Mapa da Fome da ONU. Um feito inédito.
Nem tudo o que Lula faz e diz é bem recebido, inclusive entre alguns eleitores da esquerda. A declaração de que o governo de Israel se porta, na Palestina, de forma análoga à conduta de Hitler com os judeus na primeira metade do século XX, foi considerada infame. Chegaram a propor o impeachment de Lula por ter dito essa verdade, que só não vê quem não quer.
Desde outubro do ano passado, a ofensiva israelense em Gaza deixou o tenebroso saldo de 37,4 mil mortos e 85,5 mil feridos, segundo um balanço divulgado, na sexta-feira 21, pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNWRA, na sigla em inglês). Dois terços das vítimas são mulheres e crianças. Mas o que despertou a “revolta” da direita foram as palavras de Lula. O pedido de impeachment só serviu ao propósito de dar mais munição ao chantagista presidente da Câmara, Arthur Lira.
A resiliência do presidente diante de um Congresso majoritariamente de direita e claramente hostil me impressiona. Aí é que se percebe a importância da reação popular contra as pautas reacionárias que a maior parte dos parlamentares está disposta a patrocinar. A presidente que foi mais longe em termos de um projeto libertário foi Dilma Rousseff, que conseguiu aprovar junto à Câmara dos Deputados, sem barganha, a criação da Comissão da Verdade. Hoje, sob a batuta sinistra de Lira, não teria conseguido.
Agora, diante do PL 1904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, o presidente Lula volta a se debater com a tresloucada bancada fundamentalista no Congresso. Apelidado de “PL do Estupro”, por prever até 20 anos de prisão à vítima de violência sexual que aborta tardiamente, o dobro da pena máxima prevista para o estuprador, o projeto parece fazer a direita salivar de prazer. O destino dos bebês cujas mães não são capazes de alimentá-los ou de abrigá-los a contento pouco interessa aos piedosos defensores de embriões.
A relação entre o “PL do Estupro” e outro tema tão diverso quanto a defesa, por parte da direita, do genocídio praticado por Israel contra o povo palestino, é que ambos os crimes (não sou juíza, mas tenho senso crítico e detesto hipocrisia) são apoiados ardorosamente por um grande número de brasileiros. Quanto a nós, contrários às duas pautas, somos chamados de “extrema-esquerda”. Pior, de “extrema-esquerda abortista”.
Aceito alegremente o epíteto, se este for o preço a pagar por apoiar as duas pautas justas e progressistas. •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fundamentalismo hipócrita’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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