Frente Ampla

Sul da Bahia, BH, Franco da Rocha, Petrópolis… Quantas perdas mais?

Faltam ações concretas de gestão e prioridade política no Brasil para a cultura da prevenção, o olhar para a população mais vulnerável e a responsabilidade central com a vida

Bombeiros se equilibram sobre a lama acumulada na Rua Teresa, em trabalho de busca nos deslizamentos de terra das chuvas em Petrópolis. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Sul da Bahia, Grande BH, Franco da Rocha, Petrópolis. Tragédias que tem em comum a força da natureza, cada vez mais extremada, grande perda de vidas, famílias enlutadas, centenas ou milhares de desabrigadas, perda completa dos bens de uma vida inteira de trabalho duro para conquistar, muita dor, orfandade, mães e pais sem filhos, filhos sem os pais, amores, amigos, parentes que se vão, campanhas e correntes de solidariedade que se formam, e ficamos pensando, até quando? No próximo mês, onde será? Na próxima chuva, tudo outra vez? Faltam leis, faltam recursos? O que acontece que as análises dos especialistas e as denúncias se repetem, mas as dores e perdas também? Meu Deus, até quando?

Remeto-me às legislações desde 1979, quando foi elaborada a Lei 6.766, que já estabelecia o parcelamento do solo para fins urbanos, a criação do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, e previa mecanismos claros de uso responsável, social e sustentável do uso do solo, a lei 12.340/2010, conhecida como lei das catástrofes, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil – SINDEC, sobre as transferências de recursos para ações de socorro, assistência às vítimas, restabelecimento de serviços essenciais e reconstrução nas áreas atingidas por desastre, e sobre o Fundo Especial para Calamidades Públicas, e a lei 12.608/2012, que altera a Lei de 2010 e institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC, dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil – SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil – CONPDEC, autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres.

Sem falar nas leis ambientais e acordos internacionais que estabeleceram metas para a redução de emissão de carbono e assim o país contribuir para frear o aquecimento global, responsável pelos extremos das chuvas, secas e temperaturas vividas no planeta.

Essas remissões demonstram, em parte, que não houve omissão de normas ou comando legal para agir. Na verdade faltam ações concretas de gestão e prioridade política no Brasil para a cultura da prevenção, o olhar para a população mais vulnerável e a responsabilidade central com a vida.

Estive na cidade de Petrópolis no segundo dia após as chuvas e falo aqui ainda sobre o impacto do que vi, ouvi e senti. Nenhum relato conseguiu chegar ao fim sem que a emoção tomasse conta. O desejo de um abraço era imediato e o pedido de ajuda também. O que ficou é o sentimento expresso do depoimento de um camarada nosso, Daniel Iliescu, que se entregou ao voluntariado e que nos recebeu na cidade, e que transcrevo, em parte:

“Desde a terrível noite de anteontem, parece que vivemos um pesadelo interminável. Morro da Oficina, 24 de Maio, Sargento Boening, Chácara Flora, Vila Felipe, Caxambu, Meio da Serra e várias outras localidades choram muitos mortos e desabrigados. Centenas de pessoas que morreram soterradas ou levadas pelas águas. Milhares de desabrigados. Famílias ceifadas, órfãos, milhares de enlutados.

Acima da servidão Maximiliano Neumann Filho, no Sargento, onde estávamos na hora da chuva, duas casas foram soterradas. Cinco pessoas morreram, três delas, crianças. Nosso desespero naquelas horas era chamar socorro. A sensação de impotência diante da tragédia, brutal. Filhos chegando à procura de notícias de parentes falecidos. O choque primeiro foi ali e nossa dor já era sufocante. Dona Vera, minha sogra, comandou o acolhimento, em sua garagem, das pessoas que perderam sua casa e dos vizinhos do alto da servidão, até a chuva parar e até que os rios, que eram tudo, voltassem a ser ruas, fim da noite, começo da madrugada, quando as pessoas puderam rumar a abrigos ou a casas de parentes ou amigos próximos. A manhã seguinte abriu nossa porta para o primeiro corpo dos Estivemos no apoio ao Sargento e à Chácara Flora.

Encontrei meu mano Daniel do Amendoim, seu irmão Davi e pudemos ajudar a comunidade com garrafas de água potável, uma das maiores necessidades destes locais. Depois nos encontramos no Centro de Cultura e organizamos nossa contribuição ao voluntariado ao longo da tarde e noite.

Este trabalho voluntário é muito importante! Quem puder ajudar amanhã, depois de amanhã, e nos dias seguintes também, dará contribuição gigante. É preciso, trabalho não falta hora nenhuma. Cozinhar, entregar, lavar, limpar, varrer, carregar, armazenar, transportar, acolher psicologicamente, acolher pedagogicamente a criançada, acolher espiritualmente, trazer qualquer bem para atenuar a dor das pessoas que estão desabrigadas e/ou perderam parentes.”

Meu jovem assessor de comunicação, Pedro Rocha, e sua família moram em Petrópolis. Lembro do seu desespero, pois seu filho de 5 anos ficou preso dentro da escola até meia-noite sem poder sair, a filha em outra casa, ele preso no Rio sem saber quando liberariam a entrada da cidade. As notícias alarmantes chegando e nos dias seguintes, depois de superar a fase mais dramática e juntar a família, passou a fazer parte do voluntariado e registrar as imagens da cidade, que mostram para nós todos a dimensão da angústia e o quanto ainda temos pela frente.

Pude testemunhar o comando do prefeito Rubens Bom Tempo em reunião e também no campo com sua equipe, dedicados diuturnamente. Pude constatar a presença do governador na cidade, maquinários e recursos humanos.

A população pede ajuda, não percebe efetivo suficiente do corpo de bombeiros e não consegue entender. O pai do jovem Gabriel sai à procura do filho, rio abaixo, na esperança de encontrá-lo. A ajuda de outros estados, apesar de oferecida, só é aceita pelo governador quatro dias depois. Poucos funcionários no IML para atender as famílias aflitas. O presidente da República sobrevoa a área, cinco dias depois, mas não põe os pés na lama, nem olha no olho dos familiares. Repassa para a cidade irrisórios R$2,6 milhões.

Boa parte dos deputados da bancada federal do Rio de Janeiro girou suas emendas para Petrópolis e conseguimos aportar R$ 33 milhões. A bancada estadual se somou com mais R$ 30 milhões. O relator geral do orçamento também aponta reforço orçamentário à cidade. Mas as leis de 2010 e 2012 são cristalinas quando autorizam grandes aportes em situações de calamidade pública. Isto só depende de decisão dos executivos federal ou estadual, no caso, por decisão do município e sei que a cidade de Petrópolis o fez. Já em janeiro solicitou a homologação do estado de emergência e agora de calamidade.

Há neste momento uma mistura de sentimentos. Muitos falam da impotência diante do fenômeno da natureza, outros da injustiça que se abateu sobre centenas de pessoas, entre estas tantas crianças que ainda tinham muito para viver. A indignação diante de gestões seguidas que não cuidaram de evitar a tragédia anunciada com as medidas de prevenção contidas nas leis, e também do NÃO aviso ou pouca celeridade em não retirar as pessoas para lugares seguros, diante da previsão de chuva forte, se é que era possível.

Na verdade, é possível juntar um pouco de tudo isso, pois são centenas de vidas, e estas são irrecuperáveis.
Sempre fica a pergunta, para que sejamos de fato uma civilização, que previna, supere desigualdades e pense verdadeiramente nas pessoas, quantas perdas mais?

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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