Frente Ampla
Queremos viver
Enquanto os episódios de violência e morte contra as mulheres se repetem, o discurso misógino trafega livremente nas redes sociais, alimentando o masculinismo
Por volta das 15h de 28 de novembro, uma sexta-feira normal, João Antônio Miranda Tello Gonçalves, de 47 anos, entrou armado na sala da direção de ensino do Cefet, centro federal de educação tecnológica, na zona norte do Rio de Janeiro, e disparou contra a professora Allane de Souza Pedrotti Matos, de 41 anos, e a psicóloga Layse Costa Pinheiro, de 40. Elas morreram com tiros na cabeça. Ele se matou em seguida.
Naquela noite, o influenciador digital Thiago da Cruz Schoba, 37 anos, conhecido como “calvo do Campari”, foi preso em flagrante no interior de São Paulo por agredir a namorada, de 30 anos. Na manhã seguinte, a Justiça de São Paulo concedeu liberdade provisória ao agressor. Na mesma manhã, Douglas Alves da Silva, de 26 anos, atropelou a ex-namorada, a vendedora autônoma Taynara Souza Santos, 31 anos, e arrastou-a presa ao seu carro por ao menos um quilômetro antes de abandoná-la na Marginal Tietê, em São Paulo, e fugir. Foi encontrado escondido num hotel da zona leste, no domingo. Tentou resistir à prisão e mentiu ao dizer que não conhecia Taynara.
Naquele fim de semana, em menos de 24 horas o Brasil foi lembrado (mais uma vez) de que a violência de gênero é diária e cotidiana. O pior é que estes três episódios que chegaram às manchetes do País são uma parte visível da misoginia, pois quatro mulheres morreram por dia apenas no último ano. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 37,5% das mulheres brasileiras sofreram alguma espécie de violência neste mesmo período.
O Monitor de Feminicídios no Brasil, por sua vez, contabilizou 391 mães mortas por violência de gênero no primeiro semestre de 2025, o que resultou em 683 órfãos menores de idade, apenas até o fim de julho. Número que será maior até o fim do ano: a professora Allane, morta sem chance de defesa, tem uma filha de 13 anos. A vendedora Taynara, que teve as pernas amputadas e já passou por quatro cirurgias, luta para sobreviver. Ela é mãe de um menino de 12 anos e de uma garotinha de 7.
Enquanto os episódios de violência e morte contra as mulheres se repetem, o discurso misógino trafega livremente nas redes sociais, alimentando o masculinismo, uma reação ideológica de extrema-direita às conquistas femininas, especialmente atrativa entre homens que não aceitam ser questionados em seus privilégios. Homens que não conseguem admitir uma realidade que não aquela de submissão e subalternidade por parte das mulheres. Nos querem de joelhos, dizendo sim aos seus comandos, afinal, se julgam superiores e donos de nossos corpos e nossas vidas.
Os agressores citados neste texto pensam exatamente assim. A polícia trata o crime de João Antônio como feminicídio motivado por misoginia: ele simplesmente não aceitava ser chefiado por mulheres. As denúncias de assédio contra ele no Cefet remontavam a 2021. Douglas, depois de ver Tayane acompanhada por outro homem na manhã de sábado, discutiu com o casal antes de atropelar a ex-namorada. Segundo um amigo, ele ficou “transtornado” de ciúmes, a ponto de tentar matá-la. Já Thiago deu tapas no rosto, chutes e atirou ao chão a namorada, que ficou com 11 marcas de agressão no corpo por ter se recusado a ter uma relação sexual com ele.
Não querem só nos calar. Agridem, humilham, ofendem, matam. Acham que tem este direito. É o que ensina a “machosfera”. Talvez João e Douglas sejam consumidores deste conteúdo misógino, oferecido aos gigabytes na web com a conivência das plataformas digitais. Já Thiago é um conhecido fornecedor deste discurso de ódio. O “calvo do Campari” se apresenta como “coach de masculinidade” e é referência do movimento “red pill” no Brasil. “Red pill” se apropria de uma referência metafórica ao filme Matrix: homens que tomam a “pílula vermelha” enxergam a “verdade” e deixam de ser “dominados” por mulheres. Em seus vídeos, objetifica e desumaniza mulheres com discursos abomináveis, como este: “Quando você tem um monte de lei que beneficia a mulher, você cria um monte de mulher mimada e folgada que acha que pode fazer o que quiser com outra mulher ou com homem”.
O discurso que rende influência e dinheiro a homens como Thiago, infelizmente, concretiza-se na triste realidade, que informa um aumento de 30% nos feminicídios de adolescentes, e também no crescimento na violência online contra mulheres e meninas. O Monitor de Feminicídios no Brasil mostra ainda que 46% dos crimes são cometidos por companheiros e 33%, por ex-companheiros. O perigo para as mulheres está nas ruas, mas começa dentro de seus próprios lares. Tem início quando meninos são educados para acharem que são superiores. Quando vivenciam a violência em suas casas e, adultos, a reproduzem. Quando espalham os pilares de uma sociedade machista com “piadas” e comportamentos que se destinam a colocar as mulheres em “seu devido lugar”. Este lugar, para eles, é aquele em que só nos cabe obedecer. E o preço para quem ousa desobedecer é alto.
Muitas, mulheres demais, pagam com a vida. Porque existem homens dispostos a matar quando contrariados, por mais rigorosas que sejam as leis contra a violência de gênero. É dever de todo homem se opor às piadinhas, às cantadas indesejadas, ao toque inoportuno, ao espírito de corpo cafajeste que faz silenciar diante de cada comportamento machista, desrespeitoso, criminoso. Saber ouvir um não e respeitar nossas decisões. As mulheres querem viver, livres, donas de seus corpos e de seus destinos.
No último domingo 7, marchei, ao lado de muitas mulheres e homens, no levante contra a violência de gênero que ocupou as ruas de todo o País. Temos muito a fazer, ainda. Existe lei de combate à violência de gênero. Precisamos exigir o cumprimento da Lei Maria da Penha, da qual me orgulho por ter sido sua relatora. É abrangente e responde plenamente à prevenção e à punição, mas todos os níveis de governo e o Poder Judiciário precisam executar o que esta lei determina.
É urgente derrubar de uma vez por todas estes índices vergonhosos de crimes contra mulheres no Brasil. Precisamos de uma grande campanha do governo federal contra a misoginia em todo o País. Mais: precisamos que a cultura “red pill” e todo tipo de ódio de gênero sejam claramente tipificados como crimes no Código Penal. Assim também o crime de misoginia. Precisamos que os homens entendam de uma vez por todas: nós não somos propriedade de vocês! E precisamos, mais do que nunca, votar com responsabilidade nas próximas eleições, para que o próximo Parlamento não seja misógino como o atual. Para que a extrema-direita seja derrotada e possamos ver defendidas as vidas de todas nós. Basta de ódio às mulheres! Basta de violência de gênero! Basta de feminicídios! Queremos viver!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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