Frente Ampla

O golpe bolsonarista vem de longe

O avanço das investigações sobre o 8 de janeiro reforçam a visão de que o golpismo bolsonarista foi forjado na certeza da impunidade

A invasão do Congresso Nacional no 8 de Janeiro. Foto: AFP
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Quanto mais revelações surgem na esteira da Operação Tempus Veritatis, mais se torna evidente que o golpismo bolsonarista foi forjado na certeza da impunidade. Havia uma confiança inabalável e fanática de que a tramoia daria certo e uma nova abolição do Estado Democrático de direito no Brasil se concretizaria. O golpe deu errado, mas uma coisa é certa: a resposta dada revelou que a defesa ampla da democracia foi o caminho correto.

Ao longo de todo o seu mandato, Bolsonaro não se preocupou nem um pouco em governar para o Brasil. Seus esforços se concentraram em aparelhar o Estado de modo a reduzir a sua presença na economia e na vida das cidadãs e dos cidadãos, favorecer o sistema financeiro e se perpetuar no poder – nem que, para isso, precisasse apelar para a ruptura democrática. Sua “causa” foi abraçada pelos setores mais reacionários da nossa sociedade, como generais saudosos dos porões da ditadura, empresários sem apreço à democracia e alguns líderes religiosos fundamentalistas e sedentos de poder. A máquina pública foi desvirtuada para executar os planos dos traidores da Pátria, enquanto uma outra, subterrânea, tratava de espionar e inventar fake news contra seus “inimigos”.

Agora temos a confirmação de que estavam armando uma “virada de mesa” antes mesmo das eleições. A fartura de testemunhos e provas que vêm sendo reunidas há mais de um ano comprova que havia, por parte dos conspiradores, uma fé perversa em construir artificialmente um enredo para desacreditar as urnas, violar a soberania do voto popular e garantir a continuidade daquele (des)governo. Apenas esta certeza explica que uma reunião de uma hora e meia entre Bolsonaro e a cúpula de seu governo tenha permanecido armazenada, na íntegra, por Mauro Cid, desde 05 de julho de 2022.

A gravação da incriminadora reunião foi entregue ao Ministério Público pelo antigo ajudante de ordens de Bolsonaro como parte de uma delação premiada. O sigilo do vídeo foi levantado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, pouco antes do Carnaval. Moraes é o autor da decisão de 135 páginas que, no dia 08 de fevereiro, deflagrou a operação da Polícia Federal Tempus Veritatis. Os 33 mandados de busca e apreensão e quatro de prisão tinham relação direta com a reunião de julho de 2022 e miravam, além do próprio Bolsonaro, o coração da estrutura golpista. Seus alvos eram os seis núcleos da conspiração. Destaco três: um criava fakenews e atacava o sistema eleitoral (com o “gabinete do ódio”); outro incitava militares a embarcarem no golpe de estado; e havia uma “inteligência paralela”, que espionou mais de 30 mil pessoas.

A decisão de Moraes é inédita. Pela primeira vez na História do Brasil, militares de alta patente estão sendo investigados seriamente por crimes contra a Pátria. Todos pertenciam à cúpula do governo de Bolsonaro e foram alvo de mandados no dia 08. Entre eles, Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, flagrado na reunião de julho de 2022 incentivando a tal “virada de mesa”; Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil e candidato a vice de Bolsonaro, que pressionava a cúpula militar a oficializar sua adesão ao golpe e perseguia os indecisos; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, e Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, participantes ativos da conspiração; e o general Estevam Teófilo, que seria o responsável por botar as tropas na rua após a decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Todos elencados para indiciamento pela CPMI do Congresso Nacional, que abriu o caminho para as investigações de militares de alta patente, além de outros por prevaricação, pois se omitiram mesmo cientes dos planos golpistas. A comissão também listou os financiadores e membros do gabinete do ódio para serem alvo de apuração. Mas, principalmente, o mandante Jair Bolsonaro, que encabeça a lista.

Como apontamos na CPMI, o dia 8 de Janeiro de 2023 não foi um acontecimento isolado, e sim o ato final e desesperado de um processo conspiratório que começou muito antes. Já era golpe no dia 10 de agosto de 2021, quando Bolsonaro acompanhou uma marcha de tanques no Palácio do Planalto ao lado dos chefes militares, no mesmo dia em que a Câmara recusava a tese do voto impresso; já era golpe no dia 07 de setembro daquele ano, quando o ex-presidente incitou seus seguidores contra o STF num ato público; já era golpe no dia 18 de julho de 2022, quando Bolsonaro reuniu embaixadores para espalhar mentiras sobre as eleições; já era golpe no dia 30 de outubro de 2022, quando a Polícia Rodoviária Federal fez bloqueios em estradas do Nordeste para tentar impedir que eleitores votassem em Lula no segundo turno; já era golpe em novembro daquele ano, quando o Exército permitiu acampamentos antidemocráticos na porta dos quartéis; já era golpe nos dias 12 e 24 de dezembro de 2022, quando terroristas bolsonaristas tentaram levar o caos a Brasília, inclusive com ameaça de bomba no aeroporto, para provocar, justamente, uma GLO. E então houve o 08 de Janeiro.

Há uma incrível documentação de todo este processo, especialmente no relatório da CPMI, que abriu o caminho para a investigação de militares de quatro estrelas, e também nos celulares dos investigados. Conversas que não deixam dúvida sobre as intenções nada republicanas do grupo bolsonarista. Há Mauro Cid e Braga Netto pressionando e sendo pressionados por outros conspiradores a acelerarem a execução do plano. Há, inclusive, a cópia de uma das versões da chamada minuta do golpe no telefone de Jair Bolsonaro. Quatro assessores de Bolsonaro já estão presos. Três deles são militares. Outros tantos estão em investigação, como seu ex-ministro da Justiça e Secretário de Segurança de Brasília, Anderson Torres. No escritório do ex-presidente na sede do PL, em Brasília, foi encontrado um discurso que seria lido após a concretização do golpe pelo próprio aspirante a ditador absoluto.

Todo este volume de informações veio à tona na grande mídia entre os dias 08 e 09. Há muita coisa para processar e muitos desdobramentos por vir. De lá para cá, mesmo no Carnaval, novos fatos continuaram a surgir, como os R$ 800 mil que Bolsonaro transferiu para os Estados Unidos pouco antes de seguir para lá, na véspera da posse de Lula, e que para a PF tinha a finalidade de “assegurar sua permanência no exterior, possivelmente, aguardando o desfecho das ações no Brasil onde ficaria até a consolidação do golpe”. Ou detalhes da delação de Mauro Cid, que trazem para o centro das denúncias nomes como os do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e os empresários Luciano Hang (Havan) e Meyer Nigri (Tecnisa), que se encontraram com o ex-presidente para dar apoio ao golpismo. A cada dia, um novo terremoto abala as estruturas dos extremistas. É bom que assim seja.

Agora, diante da dura realidade, há choro e ranger de dentes no bolsonarismo. A ficha de que não haverá perdão para o golpismo começa a cair. Bolsonaro, dizem, passou o Carnaval apavorado, com a certeza de que seria preso a qualquer momento. Seus aliados de sempre, normalmente espalhafatosos e histriônicos, andam discretos e construindo o discurso da vitimização e perseguição política, versões acintosas à inteligência da sociedade.

As Forças Armadas, em boa parte formadas na ideologia da segurança nacional, fortemente trabalhada antes e durante a ditadura, não pode mais tê-la como referência da sua corporação. É preciso preservar institucionalmente as Forças Armadas brasileiras nas suas funções constitucionalmente definidas, e para isto é preciso saneá-las dos golpistas de plantão, que não conseguem respeitar o sistema democrático. A anistia que se conquistou no Brasil na década de 1970 (a possível naquela correlação de forças) trouxe importantes conquistas, libertou presos políticos e permitiu o retorno de nossos exilados. No entanto, manteve impunes muitos desses que, viúvos daquela opressão criminosa, ainda continuam a conspirar contra a democracia brasileira.

É fundamental e necessário que os processos respeitem o devido processo legal, mas sejam céleres e punam exemplarmente todos os responsáveis e participantes da tentativa de golpe para que nunca mais aconteça.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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