Frente Ampla

Não basta vencer Bolsonaro em 2022 para superar o bolsonarismo

Para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo, é necessário um projeto consistente de transformação social

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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No livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil pós-político, João Cezar de Castro Rocha argumenta que o bolsonarismo é um movimento de extrema-direita que extrapola Bolsonaro: assim como antecedeu a ascensão do presidente ao poder, ele também não deixará a cena política brasileira após a sua queda. A constatação impõe um desafio muito mais complexo ao campo democrático: não basta vencermos em 2022 para superarmos o bolsonarismo enquanto projeto de sociedade.

Mais do que construir uma frente eleitoral para o ano que vem, precisamos formar uma frente articulada em torno de um projeto de desenvolvimento econômico e social capaz de responder concretamente aos problemas reais das pessoas que estão desiludidas com o sistema democrático e, por isso, decidiram embarcar nas promessas de um bufão autoritário que sempre se beneficiou desse mesmo sistema.

Precisamos, porém, entender melhor o que esse fenômeno significa. O bolsonarismo é a versão brasileira de um movimento mundial de extrema-direita que o jornalista italiano Giuliano Da Empoli definiu como a mistura do algoritmo com a cólera no livro Engenheiros do Caos. Ou seja, a revolta contra um sistema político que não dá soluções adequadas às demandas da cidadania é canalizada e reforçada através da exploração das potencialidades das redes sociais por agentes políticos, os engenheiros do caos.

Aqui voltamos ao que Castro Rocha chama de retórica do ódio, que é a concretização da guerra cultural promovida pela extrema-direita por meio do discurso. Ela nos apresenta mais uma questão crucial: o que mobiliza os ânimos para esta guerra? O medo. O bolsonarismo emerge, assim como o trumpismo e seus similares na Itália, Inglaterra, Polônia e Hungria, como um movimento reacionário e contracultural em oposição a um perigo externo politicamente produzido para encarnar a origem de todos os males: podem ser os imigrantes, a “ideologia de gênero” ou a “conspiração comunista”.

Nesse jogo de sombras, que impressiona pela verborragia delirante ao juntar no mesmo pacote anticomunistas de almanaque, terraplanistas, movimentos antivacina e monarquistas, há uma lógica social interna que acaba obscurecida pelas doses de surrealismo, mas que precisamos compreender: a angústia provocada pelo sentimento de aniquilação, seja ela simbólica ou física, perante um mundo cada vez mais instável e ameaçador. As pessoas saem para trabalhar e não sabem se voltarão, por causa da violência; jovens entram na faculdade sem saber se conseguirão emprego; pais e mães não sabem se no dia seguinte terão comida para colocar no prato dos filhos.

Na minha infância, quando meu pai falava sobre a família com os amigos, ele costumava acreditar num futuro melhor. Achava que eu e meus irmãos teríamos uma vida mais promissora do que a que ele e minha mãe tiveram. Hoje é o oposto, o futuro é lugar da incerteza e da angústia. É o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de retrotopia: quando o otimismo some do horizonte, surge o culto de retorno ao passado, mesmo que ele jamais tenha existido. O passado ideal aqui nada mais é do que o desejo de resgate de uma ordem perdida.

Isso nos ajuda a entender a guerra declarada pela extrema-direita, o que inclui o bolsonarismo, aos valores herdados do Iluminismo que sustentam a democracia liberal – trato do liberalismo aqui em seu caráter político, não econômico. O bolsonarista se sente como um cruzado sitiado pela conspiração das forças do mal, encarnadas no Brasil pelo chamado “sistema”, que inclui desde a classe política, passando pelas ONGs até chegar às universidades e ao jornalismo. Estamos diante de uma rebelião contra princípios até então universais de autoridade.

Nesse sentido, se compreendemos que o bolsonarismo é a canalização de uma revolta popular contra as limitações de um modelo de sociedade e que ele ganha forma através de narrativas de ódio, não basta operarmos somente no nível do discurso para derrotá-los. Sem dúvida, como escreveu Castro Rocha, precisamos substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo, mas para conseguirmos fazer isso precisamos ouvir os insatisfeitos mais do que falar.

Da mesma forma, devemos ­oferecer a eles um projeto de transformação ­social que apresente respostas ­concretas aos seus problemas imediatos: saúde e ­educação públicas de qualidade, ­emprego e salário digno, um teto onde morar, ­igualdade de oportunidades e combate aos privilégios. Tudo o que o ­bolsonarismo, por sua lógica de guerra permanente e destruição total, é incapaz de garantir.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1162 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE JUNHO DE 2021.

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