Frente Ampla

Esquerda nas eleições 2024: é melhor acender uma vela que amaldiçoar a escuridão

É preciso reconhecer a realidade, inclusive de exacerbação do individualismo, para restabelecer a interlocução com enormes camadas de trabalhadores

Esquerda nas eleições 2024: é melhor acender uma vela que amaldiçoar a escuridão
Esquerda nas eleições 2024: é melhor acender uma vela que amaldiçoar a escuridão
O deputado federal Orlando Silva. Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
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Está aberta a temporada de balanço eleitoral na esquerda. Quando a colheita não é farta, há sempre o risco de análises parciais contaminarem o debate e as diferenças de opinião ganharem contornos de divisão política, principalmente quando a discussão é feita via imprensa.

O pressuposto para se fazer um balanço político é estar aberto a ouvir, disposto a convencer e ser convencido e, principalmente, ir ao âmago das questões, fazendo uma reflexão profunda e autocrítica dos dilemas de nosso campo político, que, aliás, não são nem apenas brasileiros, mas parte de um cenário mundial de retrocessos.

Tudo de que não precisamos é fulanizar responsabilidades ou encontrar respostas simples para problemas complexos, como se observa a partir de apontamentos de algumas lideranças. Ponderação é uma das virtudes mais necessárias nesses momentos difíceis.

Dito isso, é de justiça se fazer um elogio público ao companheiro e amigo Guilherme Boulos, que enfrentou com altivez e coragem uma das campanhas eleitorais mais difíceis e violentas já vistas. Boulos foi o candidato natural de nosso campo pelo que acumulou no último período, por ser uma liderança forjada na luta social e que tem sido uma grata revelação na política institucional. Liderou uma frente de partidos de centro-esquerda, conseguiu novamente chegar ao segundo turno e apresentou um projeto alternativo para a cidade de São Paulo. Fomos derrotados, com votação semelhante à de quatro anos atrás.

A verdade é que a quadra histórica que vivemos é dificílima para os setores progressistas em geral, a esquerda em particular. Basta olhar para o Brasil, que enfrentou uma intentona golpista e tem o Parlamento de perfil mais reacionário desde a redemocratização. Basta olhar o mundo, com Trump ameaçando voltar ao poder nos EUA, tentativa de golpe militar “clássico” na Bolívia, Milei na Argentina, guerras sanguinárias e outros bichos.

Essa, na minha visão, é a principal lente para análise da derrota, senão nos iludiremos com quimeras. Mas é claro que não podemos apenas nos dedicar aos fatores exógenos e aos quais não controlamos, pois aí nos restaria o imobilismo, a cômoda posição de esperar o vendaval passar.

Na segunda etapa da eleição, Boulos reconheceu uma lacuna no posicionamento da esquerda que talvez seja o primeiro passo para reverter a desconexão entre o nosso discurso e os anseios atuais de enormes camadas de trabalhadores, que não se identificam mais no modelo padrão de empregado celetista. É preciso reconhecer essa realidade, inclusive de exacerbação do individualismo, para restabelecer a interlocução.

Em interessante artigo, o professor Renato Janine Ribeiro chega a falar em “esgotamento do modelo de inclusão via consumo”, grande motor econômico e social dos primeiros governos Lula e que perdurou até o Dilma 1. Por esse “modelo”, o crescimento da economia sustentado na geração de empregos formais, ainda que de baixa remuneração, criaria um ciclo virtuoso, com mais consumo das famílias, arrecadação e políticas públicas que, por um lado, combateriam a miséria e, por outro, abririam novas perspectivas para os filhos dos mais pobres. É inegável que tivemos esse ciclo de avanços.

Ocorre que, passado o auge desse período, a partir da crise iniciada em 2013 e que se degenerou na tragédia social dos governos Temer e Bolsonaro, a regressão foi tão brutal que essa família, que experimentava um lampejo de mobilidade social, viu tudo ruir a seus pés. O sonho de o filho virar doutor deu lugar a um diplomado subempregado, matando um leão por dia para não ser despejado e colocar comida na mesa. A pandemia terminou de entornar o caldo do empobrecimento e da destruição de perspectivas.

Quando o vinho virou vinagre, o solo ficou fértil para a cultura malsã da extrema-direita, que se convencionou chamar de “bolsonarismo”. Agora nosso adversário não é mais a flácida direita liberal, que, se pudesse, faria das eleições um modorrento chá das cinco. Não, a extrema-direita é aguerrida, mobilizada e domina a linguagem do polo mais dinâmico da luta política atual, que se dá no embate permanente nas redes sociais. É uma disputa muito mais acirrada.

Ao passo que a extrema-direita se consolidava como força política orgânica, ocorria uma revolução no mundo do trabalho, uma transformação ampla que engloba o avanço da economia movimentada pelas plataformas digitais, mas não se esgota nela. De acordo com números da PNAD Contínua do IBGE, em 2023, o Brasil tinha 2,1 milhões de trabalhadores por plataformas. Contudo, esse número tende a ser muito maior: segundo o Instituto Locomotiva, já em 2021, auge da pandemia, um a cada cinco trabalhadores brasileiros (ou seja, 20%!) utilizava aplicativos de internet para obter renda, seja total ou parcialmente.

Já um estudo de 2024, realizado pelo Sebrae em conjunto com a Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, mostrou que o País tem nada menos que 42 milhões de empreendedores. Essa enorme parcela da população é majoritariamente masculina (59,8%), relativamente jovem (77% tem até 44 anos) e pouco escolarizada (69% tem ensino fundamental ou médio completo).

Ou seja, é o povo das periferias de nossas grandes cidades! É a turma que está se virando: faz entrega, faz bolo, faz chapinha, monta um micronegócio, dirige Uber e ainda faz curso do Marçal no Instagram. É a vida como ela é.

Não me parece razoável acreditar que esse mundaréu de gente seja de extrema-direita, embora boa parte esteja polarizada por ela – com suas respostas simples e falsas para dramas cotidianos, como a violência urbana e a falta de serviços públicos – ou pela instrumentalização da fé.

Também há grande parcela que, à falta de perspectivas concretas de ascensão social, rende-se a ilusões de prosperidade fácil vendidas nas redes. Caros, não é nada trivial que uma pessoa que recebe Bolsa Família destine parte do dinheiro para jogar nas bets ou no Tigrinho. Por um lado, há a aspiração desesperada por mudar de vida, por outro, há gente se aproveitando disso.

Mas, voltemos. O que temos oferecido a essas pessoas, muitas das quais sempre estiveram ao nosso lado nas disputas políticas? Um exemplo: o governo propôs o projeto de lei de regulamentação dos motoristas de aplicativo para garantir-lhes o mínimo de seguridade social. Simplesmente, 75% dos afetados foram contrários à contratação em regime CLT, além de que, para piorar, prevaleceu a impressão de que era uma tentativa de tributação.

Agora mesmo, nosso governo comemora – e deve comemorar, pois estamos reconstruindo o País dos escombros – o índice de desemprego mais baixo em 12 anos, 6,4% no trimestre, segundo a PNAD Contínua do IBGE. É um feito extraordinário, mas por que não se reflete em sensação de melhoria das condições de vida das pessoas?

Será que, para milhões de pessoas, a precarização chegou a níveis tais que passou a ser impossível viver com dignidade apenas com os rendimentos do trabalho? É uma possibilidade que deveria, de pronto, desencorajar medidas de ajuste fiscal que mexam com os poucos direitos que ainda garantem alguma seguridade social ao povo mais pobre.

Será que não estamos oferecendo soluções antigas para fenômenos novos? Não existem respostas prontas, mas parece claro que é preciso pensar uma outra abordagem, pois, ao olhar de parcelas crescentes do povo, o Estado não faz – e, quando faz, é para atrapalhar. É preciso inovar nas formas de comunicação, mas também no conteúdo apresentado.

Por um lado, é imprescindível construir e perseverar em um projeto nacional de desenvolvimento – disso jamais devemos abrir mão! – que resgate o papel de indústria, dê centralidade a ciência, tecnologia e inovação, alavanque o crescimento econômico e gere empregos de qualidade.

Mas, por outro, num movimento em pinça, o Estado deve se fazer presente, ser mais parceiro, oferecer suporte e condições necessárias (crédito, capacitação, insumos etc.) para essa massa de pessoas que sonham em trabalhar por conta ou, na palavra do momento, empreender. Quando falo isso não me refiro apenas a quem quer montar uma bolaria ou uma adega. Tem muita gente com capacidade para inovar, desenvolver tecnologias, softwares, games, aplicativos, as profissões ligadas à economia digital, precisando de um empurrão para ganhar o mundo. É preciso olhar para essa vastidão de pequenos e criar mecanismos públicos, simplificados e desburocratizados, para o fomento, assim como o BNDES faz com grandes projetos, como a neoindustrialização.

Por fim, também é preciso falar para o futuro, resgatar a esperança, reavivar a militância e o sentido coletivo da política. Oferecer soluções concretas para os problemas imediatos é fundamental, mas o ganho material passa a ter um sentido mais amplo e profundo se for conectado aos nobres sentimentos de justiça social e solidariedade.

Se o momento político é delicado para o campo progressista, vale lembrar que lutar por dias melhores para esse povo que nos deu um recado duro na eleição é a razão de existir da esquerda. É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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