Frente Ampla

Distritão é mais uma deformação do sistema político

Querem aprová-lo sem qualquer debate com a sociedade, em tempo recorde, para que possa valer para as próximas eleições, escreve Boulos

Foto: Reprodução
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Nenhuma máxima foi tão desmentida pelo Brasil nos últimos anos como a de Tiririca. “Pior do está não fica”, dizia o palhaço na sua candidatura a deputado federal na década passada. De lá para cá, piorou e muito. Veio o golpe de 2016, veio Michel Temer e, depois, Jair Bolsonaro. A escalada de retrocessos tem nos ensinado a duras penas que pior do que está, sim, pode ficar.

Mesmo o sistema político brasileiro, que é cheio de vícios, pode piorar. É o que nos mostra a proposta de reforma política patrocinada por Arthur Lira na Câmara dos Deputados. É um pacote de medidas que alguns líderes partidários querem aprovar a toque de caixa, para poder entrar em vigor nas eleições do ano que vem. Na verdade, são duas iniciativas legislativas: uma para mudanças infraconstitucionais, coordenada pela deputada Margarete Coelho, do PP, e outra para alterações na Constituição, coordenada pela deputada Renata Abreu, do Podemos.

Na proposta até existem pontos que podem melhorar o sistema político, como a inclusão das federações partidárias, que permitiria um modelo de alianças mais sólido, a exemplo da Frente Ampla uruguaia. Ou ainda a mudança constitucional para assegurar a cota mínima de vagas no Parlamento para mulheres. Embora esta última viria como uma espécie de compensação para outra proposta, bancada por Lira e pela maior parte dos partidos da direita e do Centrão, que é a retirada da obrigação de 30% das vagas e recursos para candidaturas femininas.

Mas, na verdade, a joia da coroa é a mudança do sistema eleitoral por meio do chamado Distritão. Hoje, o sistema para eleição de deputados e vereadores no Brasil é proporcional, diferente da eleição de presidente, governadores, prefeitos e senadores, que são majoritárias. Na eleição majoritária, o mais votado leva e ponto final. Na proporcional, tal como existe hoje no Brasil, o cálculo para a eleição é feito por uma combinação do voto individual de cada candidato com a votação do partido. Se um partido não atingir o quociente mínimo – que é o número total de votos dividido pelo número de cadeiras legislativas do município ou estado – não elege ninguém, ainda que tenha um candidato bem votado.

O Distritão acaba com a eleição proporcional para o Parlamento, transformando-a em majoritária, ou seja, os mais votados entram de forma linear, independentemente do cálculo partidário. À primeira vista pode dar a impressão de que é o mais justo, mas o significado político do Distritão é a personalização completa da política e a perda de relevância dos partidos. Apesar de muitos partidos no Brasil serem balcões de negócios, o partido político é – ou deveria ser – o espaço onde se afirmam projetos coletivos.

Se a eleição parlamentar se torna majoritária, as chapas partidárias perdem sentido e a eleição vira um cada um por si sem limites. Isso também dificultaria o espaço para novas lideranças, que perderiam até a oportunidade de serem candidatos, uma vez que os partidos lançariam apenas os candidatos mais competitivos.

Nosso sistema político tem muitos problemas, a começar pela forma como os interesses privados e corporativos sequestram os espaços de decisão, desde o financiamento eleitoral, passando pelos lobbies, até a distribuição de postos decisivos no Estado. Precisamos pautar limites mais rigorosos para o financiamento privado individual de campanhas, regulamentar a atuação de grupos de interesse na política e proibir a porta giratória entre executivos lobistas e cargos públicos. Precisamos de uma reforma política que democratize mais o poder e fortaleça o senso coletivo da política, por exemplo, com a instituição do voto em lista partidária, que poderia ainda assegurar maior proporção de mulheres e negros no Parlamento. O Distritão vai na contramão dessa perspectiva.

O pior é que querem aprová-lo sem qualquer debate com a sociedade, em tempo recorde, para que possa valer para as próximas eleições. Ao que tudo indica existe hoje uma maioria na Câmara, mas não no Senado, onde enfrenta resistência do próprio presidente Rodrigo Pacheco. É essencial mostrar para a sociedade que se trata de mais uma deformação do sistema político do País. Ao contrário do que pensava Tiririca, pior do que está, fica.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1163 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE JUNHO DE 2021.

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