Frente Ampla
Despedida
Em 2022, devemos caminhar unidos e enxergar os sinais de luz na escuridão


Esta é a minha coluna de despedida de 2021 e também deste espaço. Havia terminado um texto sobre esperança e estava pronta para enviá-lo, quando li as ameaças de morte dirigidas às vereadoras Daiana Santos, do PCdoB, e Karen Santos, do PSOL, e estendidas a Bruna Rodrigues, do PCdoB, Laura Sitto, do PT, e Matheus Gomes, do PSOL, integrantes da Bancada Negra da Câmara Municipal de Porto Alegre. As ameaças me indignaram, por óbvio, mas mais ainda a naturalidade com que as nossas instituições seguem “funcionando”. No país em que Marielle Franco foi executada, avolumam-se ameaças contra vários de nós, que enfrentamos os governos negacionistas e descomprometidos com os direitos do nosso povo.
A banalização desse ambiente político de violência e do vale-tudo é parte da estratégia da destruição do Brasil. Solidarizo-me com as minhas companheiras e meu companheiro de luta, porque sei as razões pelas quais foram ameaçados: representam as luzes que podemos ver em meio à escuridão do que estamos vivendo. Não é sobre vocês, mas sobre os milhares de brasileiros e brasileiras negras que são representados por vozes como as suas, que gritam contra a fome, o desemprego, o encarceramento em massa, contra o fim do ProUni, que resistem ao desmonte do SUS e do SUAS.
As eleições municipais de 2022 tiveram recorde de candidaturas de pessoas negras e trans eleitas. Um avanço no país que mais mata pessoas trans e que assassina um jovem negro a cada 23 minutos. Quando a extrema-direita ameaça as nossas lideranças, entendemos o que eles têm a dizer: é como se gritassem que querem preservar o poder político e a sociedade como são. Afinal, sabemos, estamos no Brasil com seu imenso histórico escravocrata. Aqui, classe social tem cor e gênero, como Sueli Carneiro nos ensina.
E nós, os progressistas, mulheres e homens brancos de esquerda? Paramos para ouvir o que a eleição dessa galera, como a Bancada Negra de Porto Alegre, tem a nos dizer? Percebemos quem são as vozes que lançam luz à escuridão que estamos vivendo? Essas são as vozes que denunciam cotidianamente o que o Laboratório das Desigualdades Mundiais (World Inequality Lab), ligado à Escola de Economia de Paris, codirigido por Thomas Piketty, anunciou esta semana: o Brasil é o segundo país mais desigual do G-20. Aqui, apenas 10% dos mais ricos detêm 55% da renda nacional, a metade mais pobre da população recebe 29 vezes menos que os mais ricos, o 1% mais rico possui metade da fortuna patrimonial brasileira.
São as vozes que gritam por trabalho e renda, e sabem que o IBGE nos mostra que o desemprego permanece acima da média nacional entre pessoas negras (17,2%). Entre as mulheres, a taxa é de 16,4%, também acima. Por isso, um instrumento político potente como a Bancada Negra tem muito a nos ensinar. E não é instrumento de uma luta “identitária”, expressão utilizada sempre de maneira crítica e em tom jocoso, como alguns de maneira simplista resumem, reafirmando suas próprias identidades, como bem lembra o professor Silvio Almeida.
No Brasil em que cada vez existe menos Estado e políticas públicas, o invisível trabalho doméstico amplia as desigualdades. Conforme dados do IBGE, quase a metade das mães com filhos de zero a 3 anos não está trabalhando (43,4%), enquanto apenas 10,8% dos homens com crianças pequenas em casa não trabalham. Quando falamos de mulheres negras, esses dados são ainda mais alarmantes: 51,3% das mulheres negras não conseguiram trabalho remunerado em 2019. Apenas 35,6% das crianças nessa faixa etária frequentam creches. Ou seja, a responsabilidade com o conjunto dos cuidados de 64,4% das crianças, na maioria esmagadora das vezes, recai sobre as mães ou avós. Segundo a pesquisa “Nós e as Desigualdades”, da Oxfam Brasil, 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito pelas famílias – e desse total quase 85% é feito por mulheres.
Em 2022, precisamos de unidade política para isolar a extrema-direita e enfrentar o terror da fome, do desemprego, da violência, da devastação ambiental representados por Bolsonaro e pelas candidaturas bolsonaristas, que defendem exatamente o mesmo programa que o presidente. Vez ou outra, até o negam por três vezes, como faz Sergio Moro, que insiste em se apresentar como terceira via, mesmo sabendo que ele e Bolsonaro são “uma coisa só”, como afirmou Rosângela Moro.
Com unidade, muita humildade, escuta e pés fincados na realidade podemos acordar do pesadelo. Mas precisamos, para tanto, ouvir as vozes que ecoaram mais alto durante os últimos anos: as vozes das mulheres e dos homens negros, da juventude, dos indígenas. Essas são as vozes que nos conduzirão para o futuro, para a realização do sonho chamado Brasil.
Que todas as leitoras e leitores tenham um fim de ano com saúde, e que possam restabelecer suas energias para o imenso 2022 que virá.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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