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Água, seca e descaso

As chuvas não devem ser culpabilizadas pelas tragédias que nos atravessam

Água, seca e descaso
Água, seca e descaso
Foto: Camila Souza/Governo da Bahia
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A situação das populações diante das muitas regiões afetadas pelas chuvas no Brasil expõe os contrastes do País. As águas revelam as realidades que a força do capital cuida, desde sempre, de esconder. A natureza grita por políticas que a protejam. As chuvas não devem ser culpabilizadas pelas tragédias que nos atravessam desde novembro de 2021 e que adentraram 2022 com centenas de cidades sendo arrastadas em suas iniquidades pelas forças das águas.

O socorro para as comunidades atingidas pelas enchentes na Bahia e em Minas Gerais são reveladoras do Brasil profundo. E as manifestações de apoio têm vindo, essencialmente, de organizações e movimentos sociais. São eles, afinal de contas, que têm os contatos e conhecem, desde antes e durante a pandemia, as realidades das populações empobrecidas e abandonadas pelos poderes governamentais.

O socorro do governo federal não chega porque as políticas sociais foram desmontadas. Governantes estaduais e municipais nem sequer criam expectativas de que chegue ajuda federal – ou mesmo um gesto de solidariedade – porque sabem que a presença do atual governo só se dá por meio da violência, da disputa e da politização.

O que estamos vivenciando é revelador dos efeitos da PEC 95, que, em 2016, congelou por 20 anos os investimentos em saúde, educação e políticas sociais. Hoje, essa lacuna pesa nas costas de mulheres, jovens e idosos.

Em meio à pandemia da Covid-19 e às enchentes há ainda a carestia do custo de vida. Neste contexto, nossa sociedade precisa do Estado brasileiro atuando no controle de preços, gestando políticas de estoques para levar o baronato do campo e das empresas a baixar os preços abusivos. Só assim, quem sabe, o povo volta a comer carne neste país de 230 milhões de cabeças de gado.

Para além da campanha #TemGente­-ComFome, a Coalizão Negra por Direitos, assim como tantas outras iniciativas, tem atuado no sentido de fazer chegar ajuda e, ao mesmo tempo, levantar as discussões sobre a necessidade de políticas permanentes que cuidem do enfrentamento à fome, do direito à terra e que pautem uma educação ambiental crítica.

Os desastres em curso refletem ainda o desmonte das legislações ambientais e dos órgãos que deveriam cuidar das políticas em cada estado. Vemos o enfraquecimento de órgãos como o Ibama – responsável, por exemplo, pela fiscalização do trabalho análogo à escravidão – e o descumprimento da Convenção 169 e do Decreto 6040, que protegem os direitos dos povos tradicionais.

A agenda socioambiental, para além das cúpulas internacionais e das discussões para inglês ver, está à nossa porta, na chuva que leva casas, vidas, fotografias e sonhos. A agenda que interessa a todas, todes e todos é aquela que leva em conta cada quintal produtivo, cada leira de coentro, cada manaíba de aipim, cada programa de manejo de resíduos sólidos, pois 80% do que vai para o lixo pode ser recolhido e transformado por homens e mulheres que o reciclam.

Os abismos climáticos, que têm sido tratados como algo novo, nada de novo têm. O que mudou é que, com a força das mídias independentes, tem sido possível tirar a etiqueta liberal-assassina de temas como fome e seca, tratando-os como fatos jornalísticos que extrapolam os controles das narrativas dos interesses corporativos. Tais temas, mesmo com metade do País comendo menos do que realmente precisa para se alimentar, sempre foram evitados pelos jornalões.

Esse mesmo silêncio se faz ouvir diante das grandes cidades tamponadas com o cimento que impede o escorrer das águas e da seca no eixo Sul-Sudeste, que leva cidades como Curitiba a viver a absurda situação de ter água dia sim, dois dias não, e castiga Santa Catarina com a seca em boa parte de seu território de produção agrícola.

O mesmo podemos dizer sobre os solos enfraquecidos que arrasam e arrastam as terras, mostrando os abismos da monocultura do eucalipto que se estende por regiões inteiras do País – o extremo sul da Bahia entre elas.

A natureza cobra seu preço, e é fundamental, por isso, debatermos as políticas ambientais que enfrentem temas como justiça hídrica, justiça no acesso à terra e justiça na distribuição das riquezas nas cidades e no campo.

A Educação Ambiental Crítica deve ser um dos pilares da transição ecológica da qual precisamos. Na reconstrução do Brasil, devem ser criados marcos legais que levem em conta os direitos da natureza, das pessoas e dos animais, e que impeçam que a ganância da mineração e da monocultura fique acima do direito à vida. Só assim a poesia de nossas vidas romperá a sina do sertão virar mar.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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