Frente Ampla

À luz ou às trevas?

A chancela oficial do Ministério da Saúde a práticas truculentas no momento do parto confirma a trágica e repetida constatação de que o governo federal conduz o povo brasileiro às trevas e ao desespero

Foto: EBC Créditos: EBC
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O ato de dar à luz talvez seja o mais sublime da experiência humana. Muito além da perpetuação da espécie, esse momento costuma inspirar sentimentos de alegria, senso de responsabilidade e esperança. Ao longo da história, o parto evoluiu de um ato quase heroico, envolvido em muitos riscos e sofrimentos, para um procedimento seguro, menos invasivo e cercado de maior conforto e carinho para a mulher e a criança, graças à associação do progressivo conhecimento científico com estratégias de humanização.

Infelizmente – sobretudo em países como o Brasil, em que a população de baixa renda tem status precário de cidadania -, não são raros os relatos de desrespeito à mulher, à sua autonomia e ao seu corpo, com manifestações de violência verbal, física ou sexual e com a adoção de intervenções e procedimentos desnecessários ou sem evidências científicas. Um rol de perversidades conhecido como violência obstétrica.

Com o toque extra de perversidade pela proximidade com o Dia das Mães, o Ministério da Saúde lançou a 6ª edição da Caderneta da Gestante, amplamente utilizada no SUS. A nova edição traz orientações equivocadas, dissociadas das melhores práticas internacionais que visam combater a violência obstétrica. Por exemplo, recomenda a episiotomia, um procedimento ultrapassado, sem evidência científica, nem apoio da Organização Mundial da Saúde, desde 2018. Esse corte feito na vagina durante o parto é considerado por Marsden Wagner, ex-diretor da área de Saúde da Mulher e da Criança da OMS, uma “mutilação genital”.

O documento, além indicar a amamentação exclusiva como método contraceptivo nos primeiros seis meses pós-parto, uma recomendação bastante duvidosa, estimula o uso da manobra de Kristeller, uma tentativa de empurrar o bebê com as mãos, braços, cotovelos e até mesmo subindo na barriga da gestante em trabalho de parto, com a não rara ocorrência de hematomas, fraturas e roturas de órgãos da mãe e/ou do feto. Em documento de 2017, as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal do MS recomendam a não realização dessa manobra que, desde 2019, tornou-se proibida aos profissionais de saúde brasileiros.

Embora ainda seja um assunto sem o destaque adequado na imprensa e mesmo na área da saúde, a violência obstétrica tem crescido nos últimos anos, causando graves sequelas às mulheres. Como é óbvio, a expressão busca dar visibilidade aos maus tratos que mulheres sofrem ao dar à luz. Mas em outubro de 2018, o Conselho Federal de Medicina inverteu seu significado ao publicar um parecer em que a classifica como “uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia”. Em 2019, o MS aboliu seu uso, por considerar uma “conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado”. Para ambas as instituições, a melhor forma de lidar com este grave problema foi fazê-lo desaparecer de seus textos e preocupações.

Há quem veja no ato de dar à luz uma criança uma forma de devolver ao mundo a esperança perdida. A chancela oficial do Ministério da Saúde a práticas truculentas e sem comprovação científica no momento do parto confirma a trágica e repetida constatação de que o governo federal conduz o povo brasileiro às trevas e ao desespero. A imediata revogação da Caderneta da Gestante é um direito das mulheres, uma obrigação do Estado brasileiro e um dever de humanidade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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