Frente Ampla

A esquerda e o teto de gastos

Revogar a amarra fiscal aprovada por Temer é um dos pontos centrais no debate programático

O ex-presidente Michel Temer. Foto: AFP
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O teto de gastos voltou a ser assunto nacional depois da decisão de Bolsonaro de criar o Auxílio Brasil, por meio do aumento do valor do Bolsa Família para 400 reais no ano eleitoral. As regras e os critérios da ampliação do programa não foram apresentados, mas o anúncio foi suficiente para quatro pedidos de demissão na equipe de Paulo Guedes e uma sanha dos neoliberais na mídia acusando o “furo do teto”.

Precisamos colocar o debate no devido lugar. A polêmica entre o governo e os liberais oculta o verdadeiro problema. De um lado, os ideólogos do mercado financeiro querem a redução do Estado brasileiro a pó, olhando com indiferença a multidão de famintos a revirar o lixo em busca de restos ou à espera de sua vez na fila do osso. Tudo o que querem é capturar o fundo público para si. De outro lado, Bolsonaro, desesperado com a perda de popularidade e o fantasma da cadeia, tentando todos os estratagemas para a reeleição.

É evidente que o aumento do Bolsa Família é necessário, diante da epidemia de miséria e da inflação no preço dos alimentos. Mas a preocupação de Bolsonaro não está nem nunca esteve em criar soluções para o sofrimento dos brasileiros mais pobres. Foi ele quem cortou o auxílio emergencial no pior momento da pandemia, auxílio que queria que fosse de apenas 200 reais. Seu governo foi o grande responsável pelo agravamento da crise social com os cortes em políticas públicas, sob o comando de Guedes.

Agora, a um ano para a eleição, faz um arranjo que envolve a PEC dos Precatórios – tirando o pagamento dessas dívidas do cálculo do teto – e puxadinhos afins para entregar algo sem ter de mexer no orçamento das emendas parlamentares do Centrão, que ele elevou como nunca a política de Estado. O debate que precisamos encarar sem hesitações é a revogação do teto de gastos. A medida, aprovada por Michel Temer após o golpe de 2016, é uma excrescência sem paralelo internacional. Engessar o investimento público de uma nação por 20 anos significa bloquear qualquer projeto de ­desenvolvimento econômico com combate às desigualdades sociais. Apenas o SUS perdeu 20 bilhões de reais até 2019, nos primeiros anos do teto. O compromisso da esquerda deve ser encerrá-lo, substituindo-o por outra regra fiscal.

O pós-pandemia e o pós-Bolsonaro exigirão um esforço de reconstrução nacional. O Brasil está em uma das crises mais prolongadas de sua história e não haverá saída para ela sem uma retomada consistente do investimento público. Períodos de crise, desemprego elevado e demanda deprimida exigem uma política fiscal expansiva. É, aliás, o que boa parte do mundo faz hoje em dia, com recomendações do próprio FMI e de editoriais do Wall Street Journal. Os neoliberais brasileiros são mais realistas do que o rei.

O campo progressista precisa apresentar um plano ousado de obras públicas em infraestrutura, saneamento básico e moradias populares que permita uma geração de empregos em larga escala, ao mesmo tempo que se enfrentam gargalos do País. Para combater a fome precisaremos manter e ampliar programas de transferência de renda, que têm forte efeito multiplicador, e propiciar crédito barato para a agricultura familiar, expandindo as compras públicas de alimentos para o estoque regulador da Conab e o abastecimento de redes de distribuição nas cidades.

A pandemia demonstrou a importância de reverter o subfinanciamento do SUS, com ampliação de pessoal, expansão da rede e investimentos em todo o complexo da saúde, em parceria com o estímulo à pesquisa nas universidades públicas e em instituições como a Fiocruz. Isso ganha maior urgência quando consideramos a quantidade de atendimentos e exames que ficaram represados pela pandemia e o afluxo de milhões de brasileiros que estavam na saúde privada e que, pelo desemprego, passaram a buscar o SUS.

Além disso, não há como ignorar a necessidade de retomada do investimento em educação em todos os níveis. Na educação infantil, básica e no ensino superior. A construção de um projeto de ­desenvolvimento, em tempos da revolução tecnológica do 5G, depende decisivamente de uma forte inversão pública em P&D e a ciência foi uma das áreas mais atingidas pelos ajustes de Temer e Bolsonaro nos últimos seis anos.

Esse conjunto de investimentos é absolutamente incompatível com o teto de gastos, mesmo com seus furos e arranjos. Revogar a amarra do teto precisa ser um ponto de partida para a esquerda no debate programático de 2022. Aproveitemos esta oportunidade para fazê-lo amplamente com a sociedade brasileira.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1181 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE OUTUBRO DE 2021.

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