Frente Ampla

A Abin de Bolsonaro e a nostalgia da ditadura

O aparato clandestino montado dentro da agência de inteligência no governo Bolsonaro para monitorar suas inimizades lembra, sem dúvida, os terríveis tempos da ditadura

O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Joe Raedle/AFP
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Precisamos reconhecer: os livros de História falarão de Jair Bolsonaro por muito tempo. Dificilmente seus “feitos” na Presidência da República serão esquecidos. Melhor assim, para que não se repitam. São números superlativos: mais de 700 mil mortos na pandemia de Covid-19, 33 milhões de pessoas com fome, a taxa de juros reais mais alta do planeta, quase 80% das famílias endividadas. E, agora está confirmado, um dos maiores esquemas de espionagem ilegal de que já se teve notícia, com ao menos 30 mil pessoas monitoradas, entre políticos, ministros do STF, jornalistas, policiais, advogados e até mesmo diplomatas estrangeiros. Um escândalo de dimensões internacionais.

Apenas para se ter uma ideia, a tentativa de espionar documentos e instalar escutas no Comitê do Partido Democrata dos EUA, em 1972, terminou com a renúncia do presidente Richard Nixon. Em termos de volume de informações e alvos, o caso da Abin é milhares de vezes maior. A Agência Brasileira de Inteligência foi transformada num escritório de arapongagem ilegal a serviço do clã Bolsonaro. Não sabemos ainda a extensão dos crimes, mas uma coisa é certa: ao puxar o fio dessa meada, as investigações chegam cada vez mais perto de seus principais beneficiários. Pelo menos dois crimes já são nítidos: violação ilegal de privacidade e uso da máquina estatal para benefício privado – neste caso, o benefício é impedir investigação de outros crimes da família do ex-presidente.

Em outubro passado, uma primeira operação já havia levado à prisão dois servidores da agência pela utilização ilegal do software espião israelense FirstMile, que monitorava sem autorização judicial os passos de adversários e até de aliados de Bolsonaro. No dia 25 de janeiro, o principal alvo dos mandados foi deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor da agência e pré-candidato do bolsonarismo à Prefeitura do Rio. Com ele a PF encontrou um telefone e um notebook da Abin, algo “inexplicável”, já que o deputado deixou a direção do órgão há mais de dois anos. E também um relatório que o informava sobre o andamento da investigação contra si próprio. Inadmissível este vazamento ocorrer em uma agência de Inteligência do Estado brasileiro, protegendo um homem público investigado.

Quatro dias depois desta bomba, foi a vez do vereador Carlos Bolsonaro, filho zero dois do ex-presidente, encarar os mandados de busca e apreensão. Ele é suspeito de ser um dos destinatários dos relatórios produzidos de forma ilegal dentro da agência. Em 2020, já havia sido acusado por Gustavo Bebbiano de querer criar uma “Abin paralela”. Também foi acusado pelo tenente-coronel Mauro Cid, braço direito de Bolsonaro em vários delitos, de comandar o “gabinete do ódio”, um bunker encravado no Palácio do Planalto para disparar fake news contra adversários. No dia 29, pouco antes da visita da polícia federal à casa onde estava, em Angra dos Reis, Carlos saiu bem cedo e apressado para um passeio de lancha e jetskis com o pai e os irmãos (o senador Flávio Bolsonaro, enrolado no esquema de rachadinhas e um dos supostos beneficiários da arapongagem). Certamente não foram pescar!

As operações da última semana comprovaram que ainda hoje há infiltrados na Abin, e levaram à exoneração do número dois do órgão, Alessandro Moretti. O aparato clandestino montado dentro da agência no governo Bolsonaro lembra, pela extensão de alvos de monitoramento, os terríveis tempos da ditadura militar, em que o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) era utilizado para perseguir adversários e alimentar a paranoia dos generais. A Abin de Bolsonaro era nostálgica deste período. No relatório final da CPMI dos Atos Golpistas, já havíamos apontado que, na gestão de Bolsonaro, o órgão passou a estar “comprometido unicamente com os interesses do então presidente da República”.

Tudo agora está se confirmando, e as investigações continuam, degrau por degrau, a desbaratar o esquema criminoso. Esta semana, está prevista a ida do ex-chefe direto de Ramagem à Polícia Federal: o general Augusto Heleno. Heleno é literalmente um filhote da ditadura: quando jovem, foi ajudante de ordens do “linha-dura” Sylvio Frota, entusiasta das torturas e mortes nos porões, e sempre se mostrou um saudosista do período de trevas em que vivemos de 1964 a 1985. No governo de Bolsonaro, foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e a Abin era de sua responsabilidade direta. Heleno também é um dos 61 indiciados pela CPMI do Golpe. Em outro trecho do relatório final, alertamos que “o desvirtuamento, o enfraquecimento e o desmantelamento de um sistema de inteligência que, se tivesse sido levado a sério, poderia ter evitado os acontecimentos do dia 8 de janeiro”.

Os pontos se cruzam, as suspeitas se confirmam e a situação de Jair Bolsonaro vai ficando cada vez mais complicada. Com a Justiça, claro, mas também politicamente: na última sexta-feira, a imprensa divulgou alguns dos mais de 30 mil nomes vigiados pelo esquema fora-da-lei. Adversários como Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, e os ministros do STF Luiz Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes eram de se esperar, mas até mesmo Anderson Torres, o fidelíssimo ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e um dos principais articuladores do 8 de Janeiro, foi monitorado. Quem mais foi vítima deste esquema? O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, já solicitou a lista. A sociedade quer saber.

Os próximos dias continuarão turbulentos para os bolsonaristas. Espero sinceramente que estejamos presenciando os capítulos derradeiros que marcarão a trajetória de Jair Bolsonaro nos livros escolares: o momento em que ele finalmente paga por seus crimes e vai para a cadeia. E o bolsonarismo, para a lata de lixo da História. Desta vez, sem anistia para golpista!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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