Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Freio de arrumação

O governo Lula acerta ao fazer ajustes na sua política externa

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Lula em Brasília, em foto de 25 de outubro de 2024 – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A política externa do governo vem se mostrando, até agora, um arranjo de posições e iniciativas confusas que não proporcionaram dividendos políticos ao presidente e ao País. Lula começou o novo mandato com uma expectativa internacional positiva, tanto pela lembrança do passado quanto pelo alívio de ver Bolsonaro afastado da representação do Brasil, mas não demorou para se perceber o caráter confuso e incoerente das ações.

A mais notória foi em relação à guerra da Ucrânia. Lula e a diplomacia brasileira alimentaram a pretensão de desempenhar um forte papel de mediação do conflito, na busca de uma solução negociada. Em princípio, a pretensão é legítima, mas foi mal calibrada: 1. Lula e o Brasil tinham e têm pouco poder de interferência no conflito. 2. Lula adotou um viés ­pró-Putin, tirando-lhe a condição de se apresentar como mediador neutro.

Em relação à Venezuela, Lula saiu de uma posição, em 2023, de apresentar o país com uma democracia para chegar em 2024 numa situação de atrito com o governo venezuelano, não reconhecendo a legitimidade de sua vitória nas últimas eleições. Lula vinha pagando um preço político muito alto internamente pelo apoio ao regime de Maduro. Recebeu, em troca, desrespeito e grosserias por parte de representantes daquele governo.

No tema da crise ambiental, em que se esperava que Lula tivesse um papel de liderança global, o desempenho foi frágil e até decepcionante para os ambientalistas. O fraco apetite internacional de liderar essa pauta correspondeu a algumas graves omissões internas, como não ter um plano efetivo de combate aos incêndios e deixar que os biomas do Pantanal e do Cerrado fossem degradados e depredados.

O maior acerto de Lula consistiu na firmeza com que condenou a violenta guerra de vingança e de genocídio que Israel promove contra a população palestina de Gaza e, agora, no sul do Líbano. Lula, claro, sofreu desgaste ao adotar essa posição. Mas era um custo necessário para pagar, pois se trata de uma gravíssima questão moral e de humanidade em relação à qual nenhum governante digno pode se omitir.

O grande tema da política externa do atual governo, sem dúvida, são os BRICS. Lula não foi à cúpula de Kazan, na Rússia, por conta de acidente doméstico. Parece ser exatamente em relação ao bloco que o governo brasileiro começa a retificar a sua política externa. Até então, vinha adotando uma postura de alinhamento automático à condução da China e da Rússia. A rigor, essa parceria quer fortalecer e ampliar o grupo, com o objetivo de atender aos interesses de disputa geopolítica com o Ocidente e os EUA.

Esse jogo não interessa nem à Índia nem ao Brasil. Cada país deve participar de grupos, círculos ou arranjos internacionais para defender e fortalecer seus interesses soberanos e para enfrentar de forma comum os grandes problemas globais, a exemplo da crise climática. A tese do alinhamento parte do pressuposto equivocado de que o mundo é unipolar, hegemonizado pelos EUA.

Desde a transição para o século XXI, o mundo é, fundamentalmente, multipolar com duas potências líderes: EUA e China. O Brasil não ganha nada se adotar uma posição subalterna a um ou outro desses líderes. A posição precisa ser de autonomia, equidistância e de fortalecimento de relações com todos os principais pontos fortes da multipolaridade: EUA, China, Índia, União Europeia, Rússia, África do Sul etc.

Para que o mundo seja efetivamente multipolar, não pode haver alinhamento de blocos. Isto conduziria novamente a uma bipolaridade indesejada. No contexto da multipolaridade, os países precisam ter a liberdade de participar de diversos grupos e círculos segundo os interesses e os temas específicos, pois só assim as tensões diminuirão e a possibilidade da paz será mais efetiva, com uma ordem internacional mais democrática.

Com uma tacada só, o governo ­Lula aprumou sua posição em relação aos ­BRICS e bloqueou o incômodo movimento da Venezuela que pretendia entrar no bloco. A posição do Brasil em relação à ­Venezuela não se deveu por conta das eleições fraudadas. O Brasil não quer uma presença militar significativa nem da ­Rússia nem da China na Venezuela, assim como no passado agiu para afastar uma presença militar mais ostensiva dos EUA na região. Em resumo, o Brasil não quer que a Venezuela venha a se tornar um problema de segurança estratégica no futuro. •

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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