Opinião

Francisco é o líder solitário e estadista que a Igreja e o mundo precisam agora

O risco de que a unidade do continente europeu sofra um forte abalo no dia esperado da saída da crise preocupa claramente o papa

No dia da Ressurreição, na Basílica absorta, Francisco fala para o mundo. Foto: AFP
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Assisto pela CNN uma fluvial entrevista à imprensa de Donald Trump, que a própria emissora batiza como vã tentativa de reescrever a história. Ouço a voz opaca, de tom monótono, como extraída das próprias entranhas. Em compensação, o topete permanece impavidamente imóvel. Trump esforça-se para justificar os erros clamorosos, as demoras abissais, o descaso com a situação de Nova York, todas as falhas de um pretenso combate ao coronavírus. Trump é um logorreico empedernido, quando os jornalistas conseguem interferir não o poupam com perguntas pertinentes. Então ele prossegue na mesma incongruente linha de raciocínio implacavelmente equivocada.

Às vezes surge ao seu lado o infectólogo da Casa Branca, Anthony Fauci, miúdo no confronto com o corpanzil presidencial, suponho se trate de um foragido de Orlando: sua semelhança com os simpáticos ratinhos que Walt Disney insere nos seus contos de fadas é de fato impressionante. Incerto é o futuro dele, um dia acorda demitido, horas depois é reconvocado, triste o destino do infectólogo da corte.

Em outras ocasiões, teria colocado o presidente estadunidense sobre um pedestal de mármore, identificando-o como o imperador do Ocidente. Mas não se trata de um Marco Aurélio, sem contar que seu futuro é tão incerto como o de seu infectólogo de estimação. À parte os dissabores sofridos por quem ama o presidente estadunidense, igual a Jair Bolsonaro, talvez espantado com o seu distanciamento progressivo da personagem por ele já encarnada e, portanto, merecedora de paixão total. A pandemia promete uma eleição bastante atribulada a precipitar uma derrota sem remédio. Diga-se que Barack Obama, à espreita atrás da esquina, acaba de apoiar com entusiasmo a candidatura democrata de Joe Biden.

“Ao escolher seu nome de pontífice, Francisco disse que vinha com clareza”

Ocorre-me a comparação entre o imperador fracassado e o verdadeiro líder da humanidade apavorada. Falo, obviamente, do papa Francisco, que ao escolher o seu nome como pontífice expôs de saída os seus propósitos e não se abalou quando, ao soltar uma pomba da janela do palácio do Vaticano, o pássaro da paz foi atacado por uma gaivota. Insondáveis são os caminhos da natureza, como este a desaguar na pandemia. 

Francisco de Assis é de verdade o primeiro grande herege a se insurgir contra a licenciosidade e a corrupção reinantes na corte papal naquele longínquo século XIII. Retrato perfeito de Francisco de Assis é figura em um dos afrescos de Giotto na basílica superior da cidade natal do santo: sobre o ombro o poverello sustenta a Igreja, enquanto o papa de então dorme. Permito-me não perceber no papa Francisco o jesuíta conforme diz a sua biografia.

Este filho de camponeses do Piemonte, sábio e muito mais culto do que se imagina, surge aos meus olhos sobretudo como um franciscano reformador da sua Igreja, enquanto abre as mentes de quem sabe ouvi-lo e até daqueles que não sabem. O discurso pronunciado pelo papa Francisco no dia da Páscoa, na Basílica de São Pedro, cenário faustoso no confronto com a praça cercada pela colunata de Bernini, imponente mas despida de inúteis adereços, é próprio do conhecedor dos males do mundo, a transcender os efeitos do coronavírus. Não há recanto global que Francisco não contemple no aniversário da Ressurreição de Cristo.

Nada escapa à visão papal: as guerras que ensanguentam inúmeras regiões, o drama dos refugiados, o terrorismo, ou o que resulta da aplicação das doutrinas neoliberais voltadas a dividir o mundo entre poucos ricos e bilhões de pobres.

Permito-me citar uma passagem do discurso: “Este não é tempo para egoísmos, pois o desafio que enfrentamos nos une a todos e não faz distinção de pessoas (…) penso de modo especial na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial, este amado continente pôde ressurgir graças a um espírito concreto de solidariedade, que lhe permitiu superar as rivalidades do passado. É muito urgente, sobretudo nas circunstâncias presentes, que tais rivalidades não retomem vigor: antes, pelo contrário, todos se reconheçam como partes de uma única família e se apoiem mutuamente. Hoje a UE tem um desafio epocal, de que dependerá não apenas o futuro dela, mas também do mundo inteiro. Não se perca esta ocasião para dar nova prova de solidariedade, recorrendo inclusive a soluções inovadoras”.

A referência ao comportamento prepotente da Alemanha de Angela Merkel, secundada pelo apoio muito menos significativo da Holanda, com sua pretensão de aplicar, no caso da pandemia, aos países que solicitam ajuda o mesmo instrumento que serviu, anos atrás, para socorrer a Grécia. 

Ali as dificuldades econômicas tinham sido provocadas por políticas contrárias aos ditames da UE, não se tratava das consequências de uma pandemia. O risco de que a unidade do continente europeu sofra um forte abalo no dia esperado da saída da crise preocupa claramente Francisco, a se levar em conta que o chamado Velho Mundo herdou os valores culturais e morais da chamada civilização ocidental e cristã. Mas, assim como Francisco lamenta a longa guerra da Síria, os conflitos no Iêmen, as tensões no Iraque e no Líbano, o sofrimento da população das regiões orientais da Ucrânia, propõe o perdão das dívidas dos Estados atingidos pelo vírus e um salário mundial para todos os trabalhadores do planeta.

Eu me fixo ainda no afresco de Giotto na basílica de Assis.

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