Opinião

Fiquem em casa, nós não temos presidente

Ao tomar a imagem da política externa, o grande Lima Barreto não poupava a ineficácia das escrivaninhas diante dos grandes desafios humanos

Detalhe da capa de "Lima Barreto: triste visionário," ilustração de Dalton Paula.
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Não consigo me desprender da atualidade de Lima Barreto, principalmente nestes tempos de pandemia, em que um desgoverno nos obriga à auto-organização. Da “Crônica Militante” dele, publicada pela editora “Expressão Popular”, ressalto:

“Outro detalhe curioso que Hamon (Augustin) nos dá é das tréguas espontâneas entre soldados, sem audiência dos chefes e, mesmo, apesar da oposição deles…”.

O autor cita textualmente o sociólogo belga Augustin Hamon:

“Depois de outubro de 1915, existem em setores da frente francesa, tréguas fixadas por soldados franceses e alemães, com ou sem vontade dos oficiais, impotentes. Cansados de matar inutilmente, combinaram entre si não atirar mais. Este fato deve reconfortar o pensador, porquanto prova que, apesar de meses e meses de carnificina, o ódio não invadiu todas as almas humanas.”

Lima Barreto aduz:

“Na história de Portugal, há um episódio mais ou menos parecido, cuja iniciativa, entretanto, não partiu dos soldados, mas do próprio chefe militar português, o duque de Lafoes. Quem conta é Oliveira Martins. Esse duque, nos primeiros anos do século passado, levou a efeito uma campanha contra a Espanha. Contava ele 82 anos e só tinha um ideal guerreiro: ser constantemente batido. A justificação de tão estranho desejo seu é feita com a mais risonha e simplória das filosofias.”

“É melhor transcrever o trecho do grande historiador português: ‘Rindo, diz Oliveira Martins, observou (o duque de Lafoes) ao espanhol que o atacava, a desnecessidade de se baterem. Para quê? Somos duas mulas de carga. As esporas da França fazem andar a Espanha; as da Inglaterra fazem-nos andar. Já que o mandam, pulemos; que se ouçam os guizos, pois que é necessário, segundo dizem. Mas, por amor de Deus! Não nos façamos dano, rir-se-iam demasiado à nossa custa!'”

Com efeito, atualmente, vemos o povo brasileiro organizando-se para enfrentar a pandemia da covid-19, compensando um governo ignorante, ameaçador e necrófilo. Ao tomar a imagem da política externa, o grande Lima Barreto não poupava a ineficácia das escrivaninhas diante dos grandes desafios humanos:

“Nunca foram os embaixadores agaloados e jornalistas e publicistas subvencionados que organizaram o porvir. Foram os ideólogos desprendidos e corajosos no dizer e no falar com auxílio das massas que não discutem: sofrem, têm fé e agem…”.

No posfácio, Astrojildo Pereira recorda que, em “Policarpo Quaresma”, a obra de maior alcance de Lima Barreto, o autor procedeu a crítica social:

“A luz se lhe fez no pensamento… Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses reguletes, de tais caciques, se transformava em potro, em pole, em instrumento de suplícios para torturar inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as. – Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, de olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos – este quadro passou-lhe pelos olhos com rapidez e o brilho sinistro de um relâmpago…”.

Destarte, vê-se como Lima Barreto consegue, em três parágrafos, fotografar todo o drama brasileiro: o “lawfare” (a utilização da lei com fins de política partidária); a ausência de estado para os mais pobres (porque dele se locupletam os ricos para fazerem fortuna); a inexistência de direitos (inclusive do direito humano à terra), primordial para o sustento e a sobrevivência.

Ainda no posfácio, Pereira nota que, homem de longa vista, no espaço e no tempo, Lima Barreto profetizara ao final da Primeira Guerra, na crônica “As Lições da Grande Guerra”:

“Essa Conferência de Paz, em Versalhes, e a paz que dela sair não resolvem coisa alguma, porque lá nada é feito de boa fé e num sentido largo e humano, de acordo com as grandes aspirações do nosso tempo, que não quer mais resolver o monturo do passado e a podridão da finança, sendo, por isso, uma paz precária…Ninguém de consciência poderá dizer que a pachuchada de Versalhes esteja preparando a paz ou a paz saia dela. Dos regabofes no castelo de Luís XIV, só sairá guerra, mais guerra e sempre guerra…”.

Pereira também recorda que no artigo “O Nosso Ianquismo”, Barreto resumiria a relação Brasil-Estados Unidos que ontem e hoje vigora: “…somos um disfarçado protetorado…”. Em contraposição, lembrou outro vaticínio de Barreto:

“Não dou 50 anos para que todos os países da América do Sul, Central e México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos ianques sobre nós todos; e que cada vez mais se torna intolerável.”

Como a denunciar todos os males da pobre pátria, Lima Barreto, em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, também da editora “Expressão Popular”, prenuncia os golpes de estado de 1954, 1964 e 2016:

“As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado. Aquele repetir diário em longos artigos solenes de que o governo era desonesto e desejava oprimir o povo, que aquele projeto visava enriquecer um sindicato…que atentava contra a liberdade individual, que se devia correr a chicote tais administradores, tudo isso tinha-se encrostado nos espíritos e a irritação alastrava com a violência de uma epidemia…Houvera muitas mortes assim, mas os jornais não as noticiavam. Todos eles procuravam lisonjear a multidão, mantê-la naquelas refregas sangrentas, que lhes aumentavam as vendas. Não queriam abater a coragem do povo com a imagem aterradora da morte…Entretanto eu vi morrer quase em frente ao jornal um popular.”

No ocaso da Lava Jato, deixo a sincera homenagem a mais uma vítima dela, o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancelier, levado ao suicídio por aquela operação, derribadora do que de melhor houvera no Brasil. Moro, no banco dos réus, pode ser o início de uma aurora, mas as vidas que ele e asseclas ceifaram, não voltarão.

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