Opinião

Finis mundi

O pacto recente entre a presidente não eleita da UE e o ditador de fato dos EUA não nos aponta para um destino diferente

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Trump em reunião com Ursula von der Leyen. Encontro marcou um acordo entre EUA e UE para evitar alta nas tarifas. Foto: Brendan SMIALOWSKI / AFP
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“A árvore não nega sua sombra nem ao lenhador”
Provérbio hindu

Prossegue o genocídio em Gaza, na Palestina.

Um massacre sustentado, em primeiro lugar, pelo governo dos Estados Unidos, que fornece financiamento, armamento e inteligência ao governo de Israel. Em segundo lugar, está a União Europeia, cúmplice direta ao prover recursos, armas e informações — inclusive espionando e delatando os movimentos palestinos ao Estado israelense. A UE, vale lembrar, é destino de 30% das exportações israelenses.

Sem o apoio de ambos, ou mesmo de apenas um deles, dificilmente haveria holocausto em Gaza.

No último dia 27, a Europa Ocidental praticamente deixou de existir. Pelo acordo firmado entre Donald Trump, virtual ditador e presidente dos EUA, e Ursula Von der Leyen, presidente não-eleita da UE, tarifas de apenas 15% passarão a incidir sobre produtos europeus nos EUA. Em troca, a UE se compromete a adquirir 750 bilhões de dólares em armamentos e 600 bilhões em gás natural.

“Finis Europa”, escreveria Sigmund Freud, como anotou em seu diário ao presenciar a invasão nazista da Áustria, em 1938: “Finis Austriae”. Como sabemos, não se tratava apenas do fim da Áustria. Vieram os campos de extermínio, mais de 6 milhões de judeus assassinados, além de socialistas, comunistas, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová — e 30 milhões de russos. Ao todo, entre 75 e 80 milhões de mortos, pela máquina de guerra da extrema-direita.

O pacto recente entre a presidente não eleita da UE e o presidente de fato dos EUA não aponta para um destino diferente. O armamentismo desenfreado, como sempre, conduz à guerra, inclusive como expediente para esvaziar arsenais e manter girando os lucros da indústria bélica. O atual conflito entre Tailândia e Camboja, alimentado por nacionalismos inflados, tampouco é dissociado desse contexto.

Ao mesmo tempo, as exportações transoceânicas de gás ampliarão ainda mais o aquecimento global, acelerando o colapso climático.

Esse arranjo pode, portanto, ser interpretado como um “finis mundi”: o caminho para a destruição completa da humanidade, seja por meio do uso de arsenais nucleares, seja pela catástrofe ambiental irreversível.

E tudo isso acontece sob a censura velada (e, por vezes, aberta) dos meios de comunicação — inclusive os públicos, como a britânica BBC ou a francesa France 24 Heures.

Enquanto isso, Trump acumula vitórias — e lucros. Diferentemente de seus antecessores, não colocou seus empreendimentos sob administração independente nem divulgou sua lista de bens. Pelo contrário: viaja como presidente para eventos privados, como a inauguração de campos de golfe na Escócia, no último fim de semana. O custo da viagem? Dez milhões de dólares ao contribuinte estadunidense, e mais alguns milhões ao escocês, que deslocou mais de 4 mil policiais para proteger o evento.

Além disso, Trump expande seus negócios em países como Omã, Sérvia e Uruguai — os mesmos com os quais negocia, simultaneamente, em nome do governo dos EUA.

Como se não bastasse, 70% dos centros de detenção de imigrantes nos EUA são privatizados. Cada cama ocupada gera lucro. Resultado: a perseguição a imigrantes tornou-se uma mina de ouro para empresas gestoras desses centros, que agora lucram com a superlotação de presídios antes vazios — tudo com o apoio dos políticos que financiam.

Falta ética nisso tudo? Muita. Na verdade, ela está ausente da vida política atual.

Mas se voltarmos nosso olhar para um campo onde a ética deveria ser central — o religioso —, a pergunta inevitável é: onde estão as entidades religiosas diante do genocídio em Gaza e dos pactos que colocam a humanidade no abismo?

Como pode a ética religiosa ser ainda mais rarefeita que a política, omitindo-se diante de um genocídio televisionado?

Existe espiritualidade sem ética? Ao silenciarem, essas instituições religiosas não pecam por omissão? Não deixam de existir como referência moral, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que se cala?

No livro Elogio da Sede (Paulinas), o cardeal português José Tolentino Mendonça observa:
“E acontece-nos como o fariseu: até convidamos Jesus para entrar em nossa casa. Mas não estamos disponíveis para celebrar com ele a radical forma de hospitalidade que é o amor.”

Para compreender essas lógicas, vale olhar para a cultura italiana. No livro Pasolini, comunista dissidente (editora Kaos), Giorgio Galli propõe uma reflexão incisiva:

“Mas o último Pasolini pensador político pode ser recordado sob o sinal positivo de dois pontos de apoio: o temor da possibilidade de o capitalismo, na sua última estruturação, produzir ‘relações sociais imodificáveis’; e o papel, a propósito, dos intelectuais… põe-se a pergunta crucial se os intelectuais trairão ou continuarão a garantir que as relações sociais sejam modificáveis.”

Essa pergunta, formulada há meio século, permanece em aberto.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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