Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

‘Feliz ano novo’ e mais 3 resoluções para os tempos do coronavírus

Nada mais atual que o poema ‘José’, de Carlos Drummond de Andrade

Morro de São Paulo (Foto: Tatiana Azeviche/Setur/Wikimedia Commons)
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Ninguém é Super-Homem

Todo mundo sente aquele princípio de gripe, o corpo meio mole, olho ardendo, nariz escorrendo e uma enxurrada de atchim. Todo mundo sente um pouco de dor nas costas, uma dorzinha de cabeça chata, uma tosse enjoada que não passa com Valda, uma vontade de só ficar na cama. Mas agora é diferente. No primeiro sinal de gripe, de dor de cabeça, de tosse, vem o pânico. Xi, o coronavírus me pegou! Os pacotes de lenço Yes multiplicaram por dez dentro do armarinho do banheiro, o termômetro digital está ali de plantão em cima do criado-mudo e o envelope de Advil, no bolso esquerdo do moletom, porque agora quem fica em casa só usa confortáveis moletons, mesmo que quase puídos, com o elástico meio bambo e uma cor fora da moda.

O mundo agora está dividido em dois. Aqueles que estão em casa, lavando as mãos durante quase um minuto com água e sabão, usando máscara até para colocar o lixo do lado de fora, tomando banho com as Havaianas que deram sete passos no hall do andar para receber as compras que chegaram do supermercado, aqueles que estão espirrando no cotovelo, passando álcool 70 até nas capsulas da Nespresso e esperando o Doria aparecer na televisão ampliando a quarentena até junho.

E aqueles que estão cagando e andando pro vírus, os eufóricos super-homens que acreditam piamente que nunca vão morrer, nem mesmo quando um asteroide atravessar a atmosfera e cair no oceano trazendo uma força imbatível. Aqueles que acreditam que o Batman e a Mulher-Maravilha jamais fugirão dessa ameaça correndo pelas ruas da cidade. Aqui, quietinho no meu canto, continuo escrevendo e postando a tal da hashtag fique em casa.

Aprender a Nadar

Nunca fui um exímio nadador, pelo contrário. Sou mais uma galinha esbaforida dentro d’água do que aquele pato que vinha cantando alegremente. Mas, mineiro, tenho uma verdadeira paixão pelo mar, piscina não, mar. Mar de água salgada, horizonte sem fim, onda que vai e vem. Seja o mar da Bahia, do Espírito Santo, de todos os estados do Nordeste, Mar de Espanha, Mar Egeu, Mar Vermelho, Mar Morto.

Menino ainda, catava conchinhas, pegava peixinhos com baldes de plástico, corria atrás de Marias Farinhas e escrevia com graveto o nome do meu primeiro amor nas areias de Copacabana. Morro de São Paulo, morro de saudade. Quando vejo uma imagem na televisão ou uma fotografia, aumenta ainda mais a vontade de ver o azul do mar. Sonho com ele, o mar de Dorival Caymmi, aquele que quando quebra na praia é bonito, é bonito.

Hoje sonhei com você, com Edu, quem sabe hoje tem jangada no mar, hoje tem arrastão, todo mundo pescar, chega de sombra João. Pois é, tu me acostumbraste a todas esas cosas, y tú me enseñaste que son maravillosas. Sútil llegaste a mí como una tentación, llenando de ansiedad mi corazón. Yo no comprendía cómo se quería, en tu mundo raro y por ti aprendí. Por eso me pregunto al ver que me olvidaste. por qué no me enseñaste cómo se vive sin ti.

On the Road

Quisera eu ter a paciência das bordadeiras do Nordeste, aquelas que sentam nas varandas de suas casas e passam o dia a bordar, enfiando linha e agulha no linho, jogando papo pro ar. Com uma garrafa de café ao lado, no cantinho, de tempos em tempos dão uma goladinha. Ficam ali de sol a sol num papo sem fim, contando histórias dos antepassados, o avô sertanejo, o tio-avô que diziam ter sido do bando de Lampião e Maria Bonita. Não precisam mais olhar para o trabalho que fazem, craques que são. Os bordados vão saindo, formando motivos com perfeição.

Quisera eu ter a calma da minha vó, que colocava uma almofadinha no parapeito da janela da sua casa em Santa Tereza, almofadinha feita pelo meu avô, incomodado com aquele cotovelo magro ralando em cima do cimento. Ela via os automóveis circulando, as pessoas, conhecidas ou não. Passava as manhãs ali ouvindo “bom dia, dona Zizinha, bom dia, bom dia”, enquanto o meu avô socorria o arroz queimando no fogão. A paciência dele era amor, puro e verdadeiro, que durou bem mais que cinquenta anos.

Quisera eu ter a paciência daquele casal belga que se instalou numa luxuosa barraca ao lado da nossa num camping em Toledo, na Espanha. Acordavam, faziam alongamento, ele e ela, e passavam horas no café da manhã conversando, ouvindo Luis Eduardo Aute, sem pressa de ir ao mar se purificar. Tinham um pequeno aparelho de som, um frigobar, um fogãozinho a gás, uma torradeira, uma frigideira onde faziam ovos mexidos com jamon. Nosso café da manhã era mais pobrezinho, mas também gostoso. Pão integral, geleia de laranja amarga e Nescafé. O belga tinha assim uma aparência de George Harrison e ela, pensando bem hoje, uma Marisa Monte. O Jeep deles era poderoso e foi observando os detalhes que descobrimos que era da Bélgica, pela placa miudinha, branca com escrito em vermelho. Ainda não havia a Comunidade Europeia que unificou o dinheiro e as placas dos automóveis.

Quisera eu ter liberdade que tinham. Um dia, bem cedinho quando acordamos, a vaga ao lado da nossa barraca estava vazia, eles tinham pegado a estrada. Não me pergunte rumo a que lugar desse planeta. Quem sabe, rumo a uma liberdade tão preciosa, tão desejada hoje em dia.

Feliz Ano Novo!

Nada mais atual que o poema José, de Carlos Drummond de Andrade, que apresentamos na festa de formatura do Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde outrora o poeta estudou. Era tempo dos jograis e nós subimos no palco com o bumbum cheirando a talco e perguntamos pra distinta plateia: E agora, José? Hoje acordei no meio da madrugada, fiquei alguns minutos com os olhos abertos na escuridão e resolvi dar adeus a 2020. A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E agora, José?

O carnaval já foi tenso, já não teve ovo de páscoa de Kopenhagen, não vai ter Dia da Mães no domingo, Dia dos Pais em agosto, nada disso. O centenário aqui em casa já esquecemos: Eu setenta e minha filha trinta. Não vai ter a Flip, não vai ter o Ciro de Nazaré, não vai ter Sempre um Papo, não vão ter renas flutuando nos shoppings da cidade, crianças chorando no colo do Papai-Noel, sequer amigo secreto ou festa da firma.

Não vai ter Prêmio Jabuti, Miss Brasil, Tour de France, apenas o concurso da garota Totalmente Demais na televisão está, por enquanto, mantido. Já enterramos Moraes Moreira, Luiz Alfredo Garcia-Rosa, Rubem Fonseca, Nené da Portela, Nirlando Beirão, Flavio Migliaccio, Aldir Blanc. Chega! Adeus ano velho, feliz ano novo! 

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