Felipe Milanez

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Professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia. Pesquisa e milita em ecologia política.

Opinião

Felipe Milanez: Assistimos à instalação de ampla e violenta visão de mundo

‘Embebecidos de um pensamento que os distância da realidade, pensam que estão fazendo o correto’, escreve o autor

Foto: Rick BAJORNAS / UNITED NATIONS / AFP Foto: Rick BAJORNAS / UNITED NATIONS / AFP
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Mentiras absurdas na ONU propaladas ao mundo inteiro ecoaram o fogo no Pantanal, fogo na Amazônia, fogo no Cerrado e acobertaram a proteção ao agronegócio e a mineradoras, a perseguição e ameaças a lideranças indígenas.

 

Junte-se a isso terror, intimidação, agressividade, autoritarismo e frases como: “e daí se eu levar os missionários” para evangelizar os índios, “qual o problema?”; morrem 140 mil pessoas e “daí?”; morre sertanista da Funai em meio a invasão de terras indígenas e segue o silêncio.

Não se trata, em nenhum momento, de falta de conhecimento, de cinismo. Mas da consolidação da nossa nova ditadura. Achar que basta esperar 2022 para tudo mudar é ignorar a consolidação e acomodação do regime, e a dimensão irrecuperável da violência e da destruição.

Primeiro foram os índios e os quilombolas, logo os negros, em seguida as mulheres e os homossexuais. Depois foi a floresta, o rio, os animais, a onça, o pajé que vive na onça. Ou todos esses grupos sociais, humanos e não-humanos, juntos. E a grande maioria acha que não é com ela. E os 30% já são 40%. E o holocausto ecológico segue ao ponto do não-retorno, da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado, que queimam sem parar nesta estação seca, como o rio Doce, em coma profundo junto do Paraopeba.

Tempo atrás, se discutia se era ou não fascismo. Como se aplicar o termo iria facilitar a nossa vida diante da catástrofe.

Depois que Hitler apareceu num vídeo por meio de Goebbels, já se desnudou um pouco de tudo que está por lá. É fascismo, é nazismo, mas é um pouco de cada um do pior da história da invasão do Brasil: tem a mão bandeirante, a mão das capitanias hereditárias, a violência institucionalizada pombalina, a oligarquia agrária, muitas milícias agindo em campo, e uma celebração infecta da ditadura, da tortura, do assassinato político.

Enquanto Bolsonaro mentiu na ONU, provocando ojeriza, náusea e indignação, revelando a sua mediocridade humana a todo o Planeta, o general Heleno desferiu ataques a Sonia Guajajara e a Articulação dos Povos Indígenas. Não foram movimentos desconexos, mas articulados. Movimentos de guerra, de guerra interna, de guerra injusta em busca de legitimidade. Ao mesmo tempo que reprime dentro, tenta esconder fora.

Heleno conhece o movimento indígena no Brasil. Conhece há anos. É ingenuidade achar que desconhece ou que é cínico. Conhece tão bem, que há anos combate o movimento e vem tentando eliminar o movimento indígena. Foi um dos principais artífices contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol — sabe portanto como é enfrentar, e apanhar em, argumentos, de um movimento indígena muito bem organizado e forte, capaz de vencer no Super Tribunal Federal e também de eleger uma representante no Congresso Nacional, como vitórias marcantes da trajetória brilhante da deputada Joenia Wapishana. Vem de da segunda metade da primeira década, entre 2005 e 2010, as articulações de Heleno de aproximar-se com o agronegócio, reunir o reacionarismo militar com a elite agrária, intervir em conflitos violentos como em Roraima e no Mato Grosso do Sul, e transformar minorias em inimigos da “pátria”.

Os militares, há anos, são os pistoleiros da Casa Grande. Sabem bem seu papel, e cobram por isso — notem a divisão que estão fazendo do orçamento. Tratam a nação como uma empresa, da qual são os seguranças, os guachebas. O patriotismo é vazio de sentido, mas acreditam nessa ilusão que inventam. Não só são nostálgicos da ditadura como seguem ainda absorvidos a mesma estupidez. Como cantou Geraldo Vandré sobre esse vazio de sentido na existência dos militares, são soldados “perdidos de armas na mão” que aprendem “uma antiga lição de morrer pela pátria e viver sem razão”.

A agressão de general Heleno contra Sonia Guajajara não atinge apenas à grande líder indígena, a grande chefa, pessoa imensa no pensamento e na visão do mundo. Ela atinge a todas as pessoas indígenas no Brasil, nas mais distantes fronteiras agrícolas.

Pistoleiros e guachebas sabem justificar a morte ou o ataque a alguma liderança, fazendeiros sabem como intimidar os caciques e dividir as comunidades, “você pensa como aquela lá que é contra o Brasil?”, vão dizer, cheios de razão. É um ataque que visa desumanizar e transformar em inimigo a pessoa que pensa diferente e que questiona.

A agressão contra Sonia Guajajara coloca em risco a democracia, a vida de todas as pessoas, militantes ou não, ativistas ou não, indígenas ou não, mas que simplesmente por discordarem passam a ser alvo para serem eliminadas.

É de uma dimensão tremenda de agressividade e que merece o repúdio absoluta e imediato. Uma intolerância diante do ataque. Não uma vaga espera para ver se algo muda em 2022.

Nesse mesmo momento, estreou no festival É Tudo Verdade o maravilhoso filme “A Cordilheira de Sonhos”, de Patrício Guzman. Ali sabemos os horrores da ditadura do Chile, a tentativa de apagamentos, o funcionamento do fascismo na ideologia de militares na América do Sul, a ideologia que vê a sociedade como um órgão único e alguns aspectos que não concordam são como tratados doenças que precisam ser extraídas, eliminadas desse corpo.

É o bem contra o mal, o mito cristão contra o pedófilo e comunistas. E no que colocam como o mal estão os indígenas, os quilombolas, os homossexuais, as mulheres, os comunistas, esquerdistas, petistas, psolistas, que nessa condição passam a ser inimigos da pátria, desumanizados, capazes de serem mortos, mutilados, torturados, desaparecidos. Como Victor Jara e como Marielle Franco.

Embebecidos de um pensamento que os distância da realidade, pensam que estão fazendo o correto, acreditam em suas mentiras. Criam um mundo onde sua perversidade faz sentido e escolhem viver lá. Não se afetam pela dor e pela destruição. Se acham numa batalha épica, tal como Medici e os horrores da ditadura que Bolsonaro e Heleno tanto glorificam.

Não é por erro histórico que ele diz que a ditadura matou pouco ou que livrou o país do comunismo, ou que se imagina numa guerra contra Lamarca ou Sirkis em uma floresta no vale do Ribeira. É porque vive nesse mundo encantado. E se ele ou algum consegue sair, como mostra na trilogia Guzman, ou se reserva na angústia e na fuga, ou na negação, o que é a posição mais cômoda. O negaciosnismo propalado por Bolsonaro é reconfortante a seus apoiadores. Tal como a negação dos horrores do nazismo, dos campos de concentração na Alemanha ou no Chile.

Tudo tal qual aqui. Esse mesmo sentimento que está nos conduzindo.

Guzmán sonha com a alegria da infância, em poder reconstruir tudo o que foi destruído.

Estamos assistindo a uma ampla e geral destruição e a instalação de uma ampla e violenta visão de mundo. Não sabemos o que poderá ser reconstruído depois. Nem quem vai sobreviver. Sabemos que não irão se arrepender, que irão fugir ou negar. É o fascismo. Não é só a Amazônia que está entrando em um ponto de não retorno, aquele ponto crítico da devastação em que começa a se auto destruir e a entrar em colapso.

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