Eblin Farage

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Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense

Kátia Lima

[email protected]

Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense

Opinião

Fascistização e militarização no governo Bolsonaro

Processo combina o regime autoritário com a difusão de valores conservadores com raízes em mentalidade colonial

O presidente Jair Bolsonaro e generais durante solenidade. Foto: Marcos Corrêa/PR
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O processo de fascistização e militarização das estruturas de poder em curso no Brasil pós-2019 só pode ser analisado tendo como base a identificação da natureza da burguesia brasileira e dos traços estruturantes da inserção capitalista dependente do Brasil na economia mundial.

O perfil ultraconservador da burguesia brasileira e suas ações antissociais e antinacionais de exploração crescente da força de trabalho, de exportação de parte do excedente econômico para os centros imperialistas, de privilegiamento da lucratividade do capital e de intensificação das desigualdades econômicas, políticas e sociais formatam uma modalidade duplamente rapinante do capitalismo forjada por uma mentalidade burguesa extremamente reacionária, egoísta e estreita, que realiza uma superexploração da força de trabalho, gerando setores da classe trabalhadora apartados do acesso às condições mínimas de vida inerentes ao próprio capitalismo.

A expansão do capitalismo dependente realiza a renovação, com novas aparências, do próprio capitalismo dependente, fazendo com que a frágil democracia restrita, em curso historicamente no Brasil, sob qualquer ameaça mínima à concentração de riquezas, prestígio e poder burguês, adquira a feição de uma catástrofe iminente, provocando estados de extrema rigidez estrutural.

Aqui também o papel do Estado é central: organizar a polícia e as forças armadas – realizando a militarização do poder – e o aparato judiciário para reprimir, prender, excluir, disciplinar e exterminar, se for necessário. Daí a compreensão da autocracia burguesa pelo poder ilimitado de uma classe estabelecido no capitalismo dependente. Sequer a democracia de participação ampliada é conduzida pela burguesia brasileira, mas tão somente a esvaziada democracia restrita ofertada apenas aos considerados “mais iguais”, isto é, às classes dominantes.

A condição burguesa implica, neste sentido, uma movimentação tirânica na arena política. Assim, no capitalismo dependente, a condição colonial permanente se renova. O burguês tem a mentalidade do senhor rural. O ódio de classe manifesta-se pela intolerância religiosa, pelo racismo, pela aversão aos indígenas, pela homofobia e a misoginia, expressando a manifestação de traços fascistóides que reivindicam, em momentos de crise, a intensa militarização das estruturas de poder.

No livro Poder e Contrapoder na América Latina, Florestan Fernandes (1981, p.15) destaca que os regimes fascistas foram derrotados, “o fascismo, porém, como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma força política organizada”. O autor analisa como a manifestação do fascismo persiste através de traços e tendências mais ou menos abertas ou dissimuladas, especialmente em países capitalistas dependentes, onde o autoritarismo foi largamente intensificado e reciclado. Assim, o fascismo nos países capitalistas dependentes “pressupõe mais uma exacerbação do uso autoritário e totalitário da luta de classes, da opressão social e da repressão política pelo Estado, do que uma doutrinação de massa e movimentos de massa” (FERNANDES, 1981, p. 17).

Estes traços fascistóides, para o autor, apresentam também certas continuidades culturais herdadas das estruturas autoritárias de poder do colonialismo, mas não se constituem em meros produtos dessas estruturas arcaicas que são permanentemente recicladas pelo processo identificado como condição colonial permanente acima mencionado. O fascismo, para Florestan Fernandes (1981) é uma força moderna associada aos interesses imperialistas na periferia do capitalismo.

Tratando especificamente do Brasil, Fernandes (1981) analisa como os setores dominantes organizam historicamente, a partir de composições civil-militares, uma política conservadora-reacionária que articula interesses externos e internos, realizando a nova face dos padrões de sobreexpropriação do excedente econômico e de hegemonia burguesa.

O processo de fascistização combina, portanto, o regime autoritário (por uma política econômica afinada com os interesses imperialistas), com a difusão de valores conservadores que encontram suas raízes na mentalidade colonial (racismo, homofobia, misoginia) e com a militarização do poder, especialmente de funções estratégicas do Estado burguês no capitalismo dependente.

O presidente Jair Bolsonaro, na Academia Militar das Agulhas Negras, em 2019. Foto: Marcos Corrêa/PR

Militarização no governo Bolsonaro

É neste quadro analítico que devemos inscrever o avanço de um intenso processo de fascistização conduzido, entre outras ações, pela militarização das estruturas de poder no governo Bolsonaro. O exame dos dados sobre a composição do governo revela que os militares controlam oito dos 22 ministérios, além de várias áreas do serviço público federal e de estatais. A relação abaixo demonstra como ocorre o processo de militarização no governo Bolsonaro, particularmente nos cargos estratégicos do governo.

  • Jair Bolsonaro, capitão do Exército: Presidente da República;
  • Hamilton Mourão, general do Exército: Vice-presidente da República;
  • Otávio do Rêgo Barros, general da reserva: Porta-voz da Presidência;
  • Walter Souza Braga Netto, general do Exército: Ministro da Casa Civil até março de 2021. A partir de então, ministro da Defesa;
  • Luiz Eduardo Ramos, general do Exército: Secretário de Governo até março de 2021. A partir de então, ministro da Casa Civil;
  • Augusto Heleno, general da reserva: Ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional;
  • Marcos Pontes, tenente-coronel da Aeronáutica: Ministro da Ciência e Tecnologia;
  • Bento Albuquerque, almirante da Marinha: Ministro de Minas e Energia;
  • Eduardo Pazuello, general do Exército: Ministro da Saúde até março de 2021, substituído pelo cardiologista Marcelo Queiroga.
  • Milton Ribeiro, segundo-tenente do Exército: Ministro da Educação;
  • Tarcísio de Freitas, formado na Academia Militar das Agulhas Negras: Ministro da Infraestrutura;
  • Anderson Torres, delegado da Polícia Federal: Ministro da Justiça e Segurança Pública;
  • Flávio Augusto Viana Rocha, oficial geral da Marinha: Secretário de Assuntos Estratégicos;
  • Joaquim Silva e Luna, general do Exército: Indicado a presidente da Petrobras;
  • Eduardo Bacellar Leal Ferreira, almirante da Marinha: Presidente do Conselho de Administração da Petrobras;
  • Ruy Schneider, oficial da reserva da Marinha: Membro do Conselho de Administração da Petrobras;
  • Valdir Campoi Junior, coronel da reserva do Exército: Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura;
  • Eduardo Miranda Freire de Melo, capitão de corveta: Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Neste quadro de militarização do serviço público federal, de estatais e de órgãos oficiais merece um destaque a militarização da saúde, especialmente na conjuntura da pandemia da Covid-19, conforme relação abaixo.

  • Antônio Élcio Franco Filho, coronel do Exército: Secretário-executivo interino;
  • Reginaldo Machado Ramos, tenente-coronel: Diretor de Gestão Interfederativa e Participativa;
  • Jorge Luiz Kormann, tenente-coronel: Secretário adjunto e diretor de programa;
  • Marcelo Blanco Duarte, tenente-coronel: Assessor no Departamento de Logística;
  • Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes, tenente-coronel: Coordenador Geral de Planejamento;
  • Alexandre Magno Asteggiano, capitão: Assessor;
  • Luiz Otávio Franco Duarte, coronel: Assessor especial do ministro;
  • André Cabral Botelho, subtenente de infantaria: Coordenador de Contabilidade;
  • Giovani Cruz Camarão, subtenente: Coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde;
  • Vagner Luiz da Silva Rangel, tenente-coronel: Coordenador de Execução Orçamentária;
  • Ramon da Silva Oliveira, major: Coordenador Geral de Inovação de Processos e de Estruturas Organizacionais;
  • Marcelo Sampaio Pereira, tenente-coronel: Diretor de Programa da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde;
  • Angelo Martins Denicoli, major: Diretor do Departamento de Monitoramento e Avaliação do Sistema Único de Saúde;
  • Alexandre Martinelli Cerqueira, coronel: Subsecretário de Assuntos Administrativos;
  • Flávio Rocha, almirante: Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos;
  • Laura Triba Appi, tenente: Diretora de Programa da Secretaria de Atenção Primária;
  • Mario Luiz Ricette Costa, tenente: Assessor técnico da Subsecretaria de Planejamento e Orçamento. Atuava na Diretoria de Saúde do Ministério da Defesa;
  • Celso Coelho Fernandes Júnior, major: Coordenador Geral de Acompanhamento e Execução de Contratos Administrativos;
  • Paulo César Ferreira Júnior, capitão: Diretor de Programa da Secretaria-Executiva;
  • Giovanne Gomes da Silva, coronel: Presidente da Fundação Nacional de Saúde;
  • Vilson Roberto Ortiz Grzechoczinski, segundo-tenente: Coordenador Geral da Secretaria Especial de Saúde Indígena;
  • Robson Santos da Silva, coronel: Secretário Especial de Saúde Indígena;
  • Marcio Vieira da Silva, coronel: Coordenador Geral de Orçamento e Finanças;
  • Nivaldo Alves de Moura Filho, tenente-coronel: Diretor de Programa da Secretaria-Executiva;
  • Roberto Bentes Batista, coronel: Departamento de Engenharia de Saúde Pública da Fundação Nacional da Saúde.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, em cerimônia de militares. Foto: Marcos Corrêa/PR

Quando analisamos os dados referentes aos principais setores do Ministério da Saúde, identificamos como os militares estão distribuídos em cargos estratégicos.

Departamento de Logística em Saúde

  • Tenente-coronel Alex Lial Marinho, coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde;
  • Tenente-coronel Marcelo Batista Costa, substituto na coordenação-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde;
  • Coronel da reserva Marcelo Blanco da Costa, assessor especial;
  • General da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, assessor.

Subsecretaria de Planejamento e Orçamento

  • Coronel da reserva Paulo Guilherme Ribeiro Fernandes, coordenador-geral de planejamento;
  • Capitão Mario Luiz Ricette Costa, assessor técnico que foi exonerado em 19 de janeiro de 2021, sendo nomeado Marcos Eraldo Arnaud Marques, marqueteiro conhecido como “Marquinhos Show” como assessor especial do Ministro da Saúde.

Secretaria de Atenção Especializada à Saúde

  • Coronel Luiz Otavio Franco Duarte, secretário.

Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena

  • Coronel da reserva Robson Santos da Silva, secretário;
  • Segundo-tenente Vilson Roberto Ortiz Grzechoczinski, nomeado em maio de 2020 como Coordenador Distrital de Saúde Indígena.

Para o desenvolvimento de sua política pautada na anticiência, o governo Bolsonaro, articula sua política econômica com o conservadorismo fascistóide, que tem, como afirma Löwy (2020), como um dos resultados da “versão fundamentalista do neoliberalismo, o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores”.

Essa política, pautada na articulação entre a perspectiva fundamentalista, miliciana e militarizada, sem precedentes na história do Brasil, inaugura uma quadra histórica de profundos retrocessos e extermínios de trabalhadores e trabalhadoras.

“O desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico” (idem), fortalecem o projeto da necropolítica à brasileira, explicitada nos posicionamentos do presidente da república, que trata a pandemia da Covid-19 como “gripezinha”, indica remédios sem comprovação cientifica para tratamento, justifica a inoperância e lentidão na compra de vacinas pela responsabilidade com os brasileiros para “não virarem jacaré” ou para que os ‘homens não passem a falar fino”.

Assim chegamos a mais de 318 mil mortes, sem contar as subnotificações, e o país caminha a passos de tartaruga na vacinação, enquanto a fascistização e a militarização das áreas estratégicas do governo caminham a passos largos.

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