Eblin Farage
[email protected]Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense
Processo combina o regime autoritário com a difusão de valores conservadores com raízes em mentalidade colonial
O processo de fascistização e militarização das estruturas de poder em curso no Brasil pós-2019 só pode ser analisado tendo como base a identificação da natureza da burguesia brasileira e dos traços estruturantes da inserção capitalista dependente do Brasil na economia mundial.
O perfil ultraconservador da burguesia brasileira e suas ações antissociais e antinacionais de exploração crescente da força de trabalho, de exportação de parte do excedente econômico para os centros imperialistas, de privilegiamento da lucratividade do capital e de intensificação das desigualdades econômicas, políticas e sociais formatam uma modalidade duplamente rapinante do capitalismo forjada por uma mentalidade burguesa extremamente reacionária, egoísta e estreita, que realiza uma superexploração da força de trabalho, gerando setores da classe trabalhadora apartados do acesso às condições mínimas de vida inerentes ao próprio capitalismo.
A expansão do capitalismo dependente realiza a renovação, com novas aparências, do próprio capitalismo dependente, fazendo com que a frágil democracia restrita, em curso historicamente no Brasil, sob qualquer ameaça mínima à concentração de riquezas, prestígio e poder burguês, adquira a feição de uma catástrofe iminente, provocando estados de extrema rigidez estrutural.
Aqui também o papel do Estado é central: organizar a polícia e as forças armadas – realizando a militarização do poder – e o aparato judiciário para reprimir, prender, excluir, disciplinar e exterminar, se for necessário. Daí a compreensão da autocracia burguesa pelo poder ilimitado de uma classe estabelecido no capitalismo dependente. Sequer a democracia de participação ampliada é conduzida pela burguesia brasileira, mas tão somente a esvaziada democracia restrita ofertada apenas aos considerados “mais iguais”, isto é, às classes dominantes.
A condição burguesa implica, neste sentido, uma movimentação tirânica na arena política. Assim, no capitalismo dependente, a condição colonial permanente se renova. O burguês tem a mentalidade do senhor rural. O ódio de classe manifesta-se pela intolerância religiosa, pelo racismo, pela aversão aos indígenas, pela homofobia e a misoginia, expressando a manifestação de traços fascistóides que reivindicam, em momentos de crise, a intensa militarização das estruturas de poder.
No livro Poder e Contrapoder na América Latina, Florestan Fernandes (1981, p.15) destaca que os regimes fascistas foram derrotados, “o fascismo, porém, como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma força política organizada”. O autor analisa como a manifestação do fascismo persiste através de traços e tendências mais ou menos abertas ou dissimuladas, especialmente em países capitalistas dependentes, onde o autoritarismo foi largamente intensificado e reciclado. Assim, o fascismo nos países capitalistas dependentes “pressupõe mais uma exacerbação do uso autoritário e totalitário da luta de classes, da opressão social e da repressão política pelo Estado, do que uma doutrinação de massa e movimentos de massa” (FERNANDES, 1981, p. 17).
Estes traços fascistóides, para o autor, apresentam também certas continuidades culturais herdadas das estruturas autoritárias de poder do colonialismo, mas não se constituem em meros produtos dessas estruturas arcaicas que são permanentemente recicladas pelo processo identificado como condição colonial permanente acima mencionado. O fascismo, para Florestan Fernandes (1981) é uma força moderna associada aos interesses imperialistas na periferia do capitalismo.
Tratando especificamente do Brasil, Fernandes (1981) analisa como os setores dominantes organizam historicamente, a partir de composições civil-militares, uma política conservadora-reacionária que articula interesses externos e internos, realizando a nova face dos padrões de sobreexpropriação do excedente econômico e de hegemonia burguesa.
O processo de fascistização combina, portanto, o regime autoritário (por uma política econômica afinada com os interesses imperialistas), com a difusão de valores conservadores que encontram suas raízes na mentalidade colonial (racismo, homofobia, misoginia) e com a militarização do poder, especialmente de funções estratégicas do Estado burguês no capitalismo dependente.
O presidente Jair Bolsonaro, na Academia Militar das Agulhas Negras, em 2019. Foto: Marcos Corrêa/PR
É neste quadro analítico que devemos inscrever o avanço de um intenso processo de fascistização conduzido, entre outras ações, pela militarização das estruturas de poder no governo Bolsonaro. O exame dos dados sobre a composição do governo revela que os militares controlam oito dos 22 ministérios, além de várias áreas do serviço público federal e de estatais. A relação abaixo demonstra como ocorre o processo de militarização no governo Bolsonaro, particularmente nos cargos estratégicos do governo.
Neste quadro de militarização do serviço público federal, de estatais e de órgãos oficiais merece um destaque a militarização da saúde, especialmente na conjuntura da pandemia da Covid-19, conforme relação abaixo.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, em cerimônia de militares. Foto: Marcos Corrêa/PR
Quando analisamos os dados referentes aos principais setores do Ministério da Saúde, identificamos como os militares estão distribuídos em cargos estratégicos.
Departamento de Logística em Saúde
Subsecretaria de Planejamento e Orçamento
Secretaria de Atenção Especializada à Saúde
Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena
Para o desenvolvimento de sua política pautada na anticiência, o governo Bolsonaro, articula sua política econômica com o conservadorismo fascistóide, que tem, como afirma Löwy (2020), como um dos resultados da “versão fundamentalista do neoliberalismo, o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores”.
Essa política, pautada na articulação entre a perspectiva fundamentalista, miliciana e militarizada, sem precedentes na história do Brasil, inaugura uma quadra histórica de profundos retrocessos e extermínios de trabalhadores e trabalhadoras.
“O desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico” (idem), fortalecem o projeto da necropolítica à brasileira, explicitada nos posicionamentos do presidente da república, que trata a pandemia da Covid-19 como “gripezinha”, indica remédios sem comprovação cientifica para tratamento, justifica a inoperância e lentidão na compra de vacinas pela responsabilidade com os brasileiros para “não virarem jacaré” ou para que os ‘homens não passem a falar fino”.
Assim chegamos a mais de 318 mil mortes, sem contar as subnotificações, e o país caminha a passos de tartaruga na vacinação, enquanto a fascistização e a militarização das áreas estratégicas do governo caminham a passos largos.
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
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