Opinião
Fanon na Praça da Alfândega
Entre cinema, literatura e política, a Feira do Livro de Porto Alegre expõe tanto o vigor cultural da cidade quanto as sombras autoritárias que ameaçam suas escolas
“A vida nos apressa, nos molda, nos empurra, nos mata.”
Léonor de Récondo
A Feira do Livro de Porto Alegre encerrou-se no dia 16 último com êxito extraordinário. Há uma semana da conclusão, mais de 170 mil livros haviam sido vendidos, em uma capital com pouco mais de 1 milhão e trezentos mil habitantes. A Praça da Alfândega, a principal, ficou literalmente tomada em praticamente todos os dias da feira, deixando claro que o Centro Histórico pode ser lugar de convívio — desde que seja reativado, sobretudo por meio de atividades culturais.
Para isso, conta com a vantagem de ainda ter excelentes cinemas, com a melhor programação da cidade. Aliás, são imperdíveis O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, e O Filho de Mil Homens, com roteiro baseado na obra do escritor português Walter Hugo Mãe. O primeiro, estrelado por Wagner Moura, e o segundo, por Rodrigo Santoro — ambos com atuações extraordinárias.
Em comum, os dois filmes têm roteiros com braços como de polvos mágicos, permitindo que se remeta a Dostoiévski, encarnado na linguagem deste dramático início de século. São narrativas que superam a divisão entre atores principais e coadjuvantes, tornando todos protagonistas da obra. Uma revolução na arte, que poderá antecipar outras na política e até na religiosidade.
A propósito, vale notar que nas culturas indígenas não encontramos separação entre os campos espiritual, cultural e político — o que a direita bem percebeu, e a esquerda, ainda não.
De volta às películas, os roteiros são obras de arte em si, sobre as quais elencos extraordinários atuam em perfeita sintonia — e liberdade.
Retornando à Feira, chamou atenção o fato de que os concertos de música de câmara, na praça, tinham 80% de seu repertório de música popular baseado em peças dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Receberam aplausos entusiásticos do público, que claramente avalizava essa escolha — a qual, porém, não é evidente em um país com a riqueza musical do Brasil. Nesse campo, tradicionalmente mais conservador, ainda há muito espaço para que o novo possa emergir.
Entretanto, como Antonio Gramsci assinalara, há períodos na História em que o novo não se tornou hegemônico e o velho vive seus estertores, de maneira dramática. Dessa forma, a prefeita interina da cidade, de extrema-direita, determinou que todas as escolas municipais tenham câmeras nas salas de aula e que todas as aulas sejam gravadas — uma clara violação do espaço de aprendizagem e demonstração cabal de até onde o fascismo pode chegar.
Em Caviar é uma Ova (Companhia das Letras), Gregorio Duvivier traz reflexões também muito atuais:
“A guerra às drogas é uma guerra aos pobres — e a prova disso é que não conheço nenhum rico preso por tráfico… Quando você sair do armário, vai ver que a maconha já está descriminalizada há muito tempo. O que continua criminalizada é a pobreza.”
Com efeito, nas escolas municipais de Porto Alegre serão os pobres a serem vigiados — e desde pequenos, pois, para o fascismo, até crianças representam ameaça, como os assassinos genocidas de Netanyahu as tratam na Faixa de Gaza e na Cisjordânia.
Por isso, em Os Condenados da Terra (Zahar), Frantz Fanon é categórico sobre a importância da conscientização das massas:
“Se a construção de uma ponte não contribuir para enriquecer a consciência daqueles que nela trabalham, que a ponte não seja construída, que os cidadãos continuem a atravessar o rio a nado ou de balsa. A ponte não deve surgir do nada, não deve ser imposta por um deus ex machina ao panorama social, mas, ao contrário, deve proceder dos músculos e do cérebro dos cidadãos.”
Mais adiante, Fanon amplia essa reflexão:
“A cultura nacional, nos países subdesenvolvidos, deve, portanto, se situar no centro mesmo da luta de libertação empreendida por esses países.”
Para isso, instrui:
“…a verdade nacional é, em primeiro lugar, a realidade nacional. É preciso [ir] até o lugar em ebulição onde se prefigura o saber.”
Como que visualizando a situação brasileira — pois somos o país com maior concentração de renda do mundo —, Fanon acrescenta:
“…essa caricatura de sociedade em que alguns detêm o conjunto dos poderes econômicos e políticos, em detrimento da totalidade nacional.”
No âmbito internacional, também foi visionário:
“O confronto fundamental que parecia existir entre colonialismo e anticolonialismo, até mesmo entre capitalismo e socialismo, logo perde importância. O que conta hoje, o problema que se delineia no horizonte, é a necessidade de redistribuição de riquezas. A humanidade precisará responder a essa questão, sob pena de se desestruturar.”
E pensar que estamos no centenário de nascimento desse profeta!
Seu conterrâneo, também da Martinica, Malcom Ferdinand, em Uma Ecologia Decolonial (Ubu), não deixa dúvidas quanto à ligação inseparável entre o social, o político e o ambiental, exemplificando na História a exclusão:
“Além dos corpos perdidos e dos náufragos, o navio negreiro produz Negros. Seres mantidos em uma situação fora-do-mundo, em uma relação de estranhamento radical com o mundo. ‘Fora-do-mundo’ não significa que os escravizados não estejam fisicamente presentes nas Américas, nas oficinas das cidades ou nas plantações, tampouco que seus lugares e funções sociais não sejam reconhecidos. Significa que os escravizados são mantidos fora de um conjunto de instituições, de arenas públicas e políticas onde se constrói e organiza o mundo… Eles desembarcaram sem tocar na Terra.”
Que a cultura dos livros, do cinema e da música nos torne todos, todas e todes protagonistas do ser, de fato, humanos, sobre a Terra.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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