Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Falando sozinho

Sempre levo um susto quando vejo uma pessoa falando sozinha na rua. Até que percebo um fio saindo da gola da camisa e indo até o ouvido

Foto: DIRK WAEM/BELGA MAG/AFP via Getty Images
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Lá pelos anos 1950, no bairro do Carmo, em Belo Horizonte, onde eu morava, tinha muita gente que falava sozinho na rua.

Eram chamados de loucos.

Acho que por trauma da guerra, muitos falam dela. Um homem franzino, cabelos curtos e sempre de pés no chão, repetia insistentemente, descendo a Grão Mogol:

Os alemães mataram mais de dez mil poloneses! Dez mil! Isso não pode ficar assim. Dez mil poloneses morreram! Vamos atacar!

Um outro, com Síndrome de Down, passava na porta da minha casa a caminho da farmácia, repetindo:

Matemática, eu preciso aprender essa danada da matemática, sem a matemática, eu não vou comprar remédios.

Um vizinho nosso falava sozinho, regando as plantas e cuidando das galinhas, colhendo ovos, reformando poleiros. Eu não sabia se ele estava falando com as plantas ou com as galinhas. Mas não parava de falar.

Uma tia torta minha, solteirona, muito sozinha, dava boa noite todos os dias para o Cid Moreira. Na abertura do Jornal Nacional ou no fim.

Boa noite!

Ela respondia: Boa noite!

Às vezes passava a semana inteira sem falar nada, apenas dando boa noite para o Cid Moreira.

Nas novelas, muitas vezes os personagens falam sozinho, já percebeu? Depois de uma discussão, um dos personagens vai embora e o outro sempre fala sozinha, talvez com os seus botões: Isso não vai ficar assim…

Nesses tempos modernos, sempre levo um susto quando vejo uma pessoa falando sozinha na rua. Até que percebo um fio saindo da gola da camisa e indo até o ouvido.

Quer dizer, ela não estava falando sozinha e sim com uma pessoa do outro lado da linha.

Hoje em dia, falamos muito com as máquinas. Minha sogra, por exemplo, tem altas discussões com o Waze. Ele fala para ela virar à direita e seguir em frente, e minha sogra: Nem morta! Ficou louco? Se eu virar aqui, não chego lá nunca.

Uma amiga minha que mora sozinha disse que chega em casa e, antes de acender as luzes, liga a TV e fica conversando com quem quer que esteja na tela. Outro dia ela bateu boca com o Datena, imagina!

Confesso que eu mesmo já respondi muito a vozes eletrônicas do outro lado da linha, achando que era uma pessoa de carne e osso.

Eu costumo também agradecer e dar tchau pra catraca na garagem do shopping. Como são educadas! Não vou virar a cara para elas e sair em silêncio.

Sei que muita gente anda batendo altos papos com a Alexa.

Alexa! Toca Louis Armstrong!

Alexa, qual é a temperatura para hoje? Alexa, quem vai ganhar as eleições?

Aí ela nunca responde.

Mas não é só com as máquinas que as pessoas andam conversando, não. Já perceberam como dono de cachorro conversa com ele? Conversa mesmo, pede até opinião:

Acha que essa roupa está boa pra ir trabalhar, Bolinha?

Aqui em casa mesmo, toda vez que saímos deixamos a TV ligada pro Canela não se sentir tão só. Outro dia fomos no lançamento do livro de um amigo e deixamos ele assistindo ao JN. Quando voltei, confesso que escapou:

Canela, saiu Datafolha?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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