Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Facetas nem tão discretas do machismo

A taxonomia que separa homens e mulheres em termos de amor, sexo e relacionamentos é um dos trabalhos mais bem acabados do machismo

Foto: AFP
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Nesta coluna deixo a política um pouquinho de lado para tratar, talvez, de uma faceta pouco explorada – ou até mesmo tabu – do machismo. Parto de alguns resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas realizadas pela antropóloga Mirian Goldenberg, que tratou de investigar, por meio de mais de mil entrevistas com homens e mulheres, suas percepções sobre amor, sexo e traição.

Dentre muitos dos resultados interessantes e instigantes que renderiam páginas e mais páginas de reflexão e análise, a antropóloga encontrou que a fidelidade conjugal é o principal valor nos relacionamentos contemporâneos, tanto para os homens quanto para as mulheres. No entanto, 60% dos homens e 47% das mulheres afirmaram já terem sido infiéis. Claro que temos tudo para acreditar na subnotificação desses resultados, afinal, o reconhecimento da infidelidade nos relacionamentos amorosos implica em arcar com altos custos e sanções sociais. Não se trata de uma resposta socialmente desejável, logo, a tendência é de escondê-la.

Mas o ponto central dessa coluna reside nas justificativas para os atos. Os homens, como sabemos e poderíamos imaginar, justificam as “puladas de cerca” defendendo que esse tipo de comportamento é inevitável e fruto da “natureza masculina”.  Aí entram genética, DNA, instinto e outros falsos inatismos na história. As mulheres, não. Elas justificam as “aventuras extraconjugais” apontando problemas no relacionamento: a insatisfação com o parceiro, a falta de reconhecimento e reciprocidade, a sensação de não serem valorizadas e desejadas pelos maridos e até vingança. Para as mulheres, uma fuga justificada pelas carências e insatisfações; para os homens, a inevitabilidade dos impulsos instintivos.

Ora, não há nada de novo acerca desse padrão de justificativas, certo? Mas é preciso observar outros dois pontos. O primeiro reside no fato de que não é raro encontrar mulheres que, apesar da condenação da infidelidade masculina, diagnostiquem o ato tal como os homens: é da natureza masculina. O segundo ponto está no fato de que tanto os homens quanto as mulheres jamais especulam que, talvez, homens desrespeitam o contrato da fidelidade e exclusividade pelas mesmas razões levantadas pelas mulheres, ou seja, por causa de sentimentos e emoções.

Podem parecer padrões de respostas e comportamentos distintos, mas ambos são a mais pura representação de uma sólida cultura machista. Não se distinguem.

Homens, narcotizados pelo machismo que os impõe uma identidade de sujeitos durões incapazes de sentir emoções e tratar as mulheres como qualquer outra coisa que não um objeto ou propriedade particular, tendem a dar respostas do tipo ao invés de assumirem que também precisam de reconhecimento, de afeto, de carinho, de atenção e de se sentirem desejados. Igualmente, de reconhecerem que toda essa demanda, real, ainda que escondida e suprimida, pode ser frustrada. As mulheres, quando embarcam na mesma leitura do instinto masculino para justificar infidelidades, reproduzem a mesma hermenêutica machista: homens nunca embarcam em relações extraconjugais por problemas afetivos na relação.

Um outro aspecto igualmente derivado do machismo está no fato de que às mulheres nunca se concede (e nem elas tendem a se conceder, com raras exceções) a mesma justificativa instintiva que usam para julgar e avaliar a infidelidade masculina, ou seja, mulheres, segundo esse padrão de julgamento social, nunca poderiam ter tido uma relação extraconjugal porque, simplesmente, sentiram desejo e tesão por outra pessoa que não seu companheiro ou companheira. Em outras palavras, por razões que nada têm a ver com insatisfações de qualquer ordem na vida conjugal, mas sim com suas próprias vicissitudes, subjetividades e vontades.

Essa taxonomia que separa homens e mulheres em termos de amor, sexo e relacionamentos amorosos é um dos trabalhos mais bem acabados do machismo, que, como se sabe, está longe de ser obra e prática exclusivamente  masculina. Sei que ainda é tabu, mas não precisamos de mais empiria para cedermos ao fato de que, talvez, a condição de exclusividade do amor romântico, da dita fidelidade, não encontre sua realização plena e infalível nos contratos matrimoniais ou em outros arranjos amorosos correlatos. Os números dessas pesquisas – e tantas outras evidências acumuladas, históricas e anedóticas – demostram que há uma distância significativa entre a base normativa da fidelidade e sua realização empírica plena. Não que a monogamia não exista e não funcione, ela só é, evidentemente, superestimada e usada muito mais para oprimir, constranger e julgar do que para expressar uma preferência subjetiva.

Mas o mais importante dessa história está no fato de que o machismo, nessa sua forma de realização, esconde uma obviedade indigesta a muitos e muitas: somos, homens e mulheres, seres da mesmíssima espécie. Para o bem e somente para o bem. Não há mal nenhum nisso.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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