Camila Silva

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negra, ativista, filha de Oxum e Oyá, jornalista, escritora e cineasta cujo foco principal é a inovação e a equidade nos meios de comunicação e mídias digitais. Escrevo sempre movida por um certo amor e um certo ódio.

Opinião

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Exu é pop!

Mas você seria de axé se sua vida corresse risco por isso? 

Com enredo sobre Exu, Grande Rio foi a grande campeã do Carnaval de 2022. Foto: Mauro Pimentel / AFP
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A Grande Rio e a Mancha Verde venceram o carnaval. Exu é pop! Olodumare é pop, assim como Ogum, Oxóssi, Omolu, Oxum, Iemanjá, Oxalá… todos os orixás. O xirê inteiro estava nos desfiles das escolas de samba deste ano dos grupos especial, A, B, C, ouro, bronze e blocos.

Isso não é novidade. A passarela do samba é e sempre foi um lugar de resistência e, da água do candomblé, sempre bebeu. Assisto o carnaval de pertinho na Sapucaí desde os cinco anos de vida. Tenho mais de 30… Meu pai é um dos fundadores da União da Ilha, integrante da velha guarda da escola, onde conheceu minha mãe – passista – que acompanhava meu tio, também passista, e minha tia – porta bandeira. Em todos os anos, sem exceção, as escolas deram um jeito de saudar os orixás, mas era diferente, não tinha a repercussão orgulhosa deste ano, nem tanta gente preta e… branca batendo no peito e se dizendo de Axé. Era uma festa sem Exu estampar as capas de todos os jornais e ser citado aos quatro cantos como Orixá – que é – sem tabus, sem racismo religioso.

Quem é de axé já sabe que Exu não é o Diabo, mas tivemos a oportunidade, inclusive, de ver um padre passista sambar pela Grande Rio, em rede nacional num programa de televisão e no sambódromo, ao som de “Adakê Exu, Exu, ê, Odará! Ê bará ô, Elegbará! Lá na encruza, a esperança acendeu. Firmei o ponto, Grande Rio sou eu!”. Muita coisa acontecendo pra gente louvar. Com orgulho! Ainda mais numa semana que começou com a nossa revolta contra um pai de santo – branco – chamando uma filha de santo de escrava. Digo sem citar nomes para não dar palco para racista dançar. E ele teve a resposta que precisava e, espero, ainda receberá outras: terreiro é quilombo e não lugar de açoite. E Exu é pop, não só no carnaval. 

Outro dia participei de um festival de jornalismo, o 3i, em que todos os negros mais velhos e mais novos fizeram questão de saudar seus orixás, citá-los sempre que tinham uma oportunidade. Um ambiente profissional democrático que nunca vi igual, o espaço que nunca nos foi confortável para propagar nossa fé, em que, agora, se apresenta como modus operandi dizer de onde viemos. Eu nasci no candomblé. Quem é de axé, há mais de cinco anos, vai entender o que estou dizendo e vai concordar comigo quando digo que os tempos mudaram.

Seu Zé Pilintra, Exu da Rua, no enredo da Grande Rio, campeã do Carnaval. Foto: Eduardo Hollanda | @eduardohollanda

Ser de axé – pertencer ou apenas pedir a benção a uma religião ou culto de matriz africana está na moda. Mas será que seria assim, se a vida dessas pessoas que, desde George Floyd, exaltam nossa cultura religiosa e preta corressem risco de vida para praticar sua crença? Pergunto porque é isso: na TV e no carnaval é lindo e seguro se dizer de axé. Mas no terreiro, o risco é quase proporcional à felicidade de ser e é um risco que corremos todos os dias. 

Esse ano, dia 1o de  janeiro, choramos ao ver as ruínas do Terreiro de Salinas, em São José da Coroa Grande, no Litoral Sul de Pernambuco, depois que um incêndio criminoso tomou conta do lugar e destruiu tudo. Imagine a dor de ter o igbá do seu Orixá incendiado? Mês passado, o Ilê Axé Ara da Prata viveu o mesmo terror quando foi invadido e depredado por um homem que se dizia evangélico, em Planaltina, no Distrito Federal. Aconteceu de novo, em Araraquara, em 2021 e em Caxias, no RJ, em 2019.

Aliás, a Baixada Fluminense registrou mais de 30 ataques em 2018, quando religiosos chegaram a ser expulsos de suas casas sob a mira das armas dos traficantes e só restou uma frase pichada no muro: “Jesus é dono do lugar”. É… O nome de Jesus, em vão, está escrito na bandeira de uma lista sem fim de violências, embora ele não pregasse isso. 

Há quatro meses, um homem berrando “macacos, macumbeiros, demônios”, se sentiu no direito de sacar uma arma e atirar várias vezes contra pessoas fazendo uma oferenda para Iemanjá, na Ilha do Governador, de novo, no Rio de Janeiro. 

Formas menos brutais, mas que declaram preconceito e incitam discriminação dividem lugar nessa mídia que transmite carnaval. No domingo de manhã, durante a cobertura da Fórmula 1, lá estava a repórter da Band, Mariana Becker, dizendo que um piloto só podia ter pisado num despacho para estar tão mal na corrida. 

– Oi querida, você sabia que isso é intolerância religiosa? 

Na segunda-feira, o maldito pastor já estava fazendo vídeo para dizer que Exu é o Diabo. Sendo que todos nós sabemos quem inventou Satanás e definitivamente, o demônio nunca pisou um terreiro de matriz africana.

Pequenos lembretes cotidianos para nos lembrar de onde viemos, onde estamos. Amanhã, só Exu sabe o que virá. Porque a gente também sabe que quanto mais ocupamos espaços, mas essa gente revoltada em perder seus privilégios e com a quebra dos mitos e tabus se organiza com violência. 

Exu nos protege dia e noite e nossa religião, culto, fé, crença, como queiram chamar, nasceu justamente como uma mão que nos segura diante desses açoites. E vou repetir o que Exu diz, como fiz na coluna passada: não dá pra dormir com os olhos dos outros. Nenhuma luta está ganha. Para cada jornalista – como eu – influencer, ator, artista que exaltam sua fé publicamente, há um terreiro sendo depredado, uma mãe de santo ou pai de santo sendo violentado, ou uma pessoa sendo assediada em muitos ambientes de trabalho. Ainda. Pasmem. Para cada ponto de macumba tocado num terreiro, tem uma rádio ligada a uma rádio evangélica propositalmente para provocar um macumbeiro. 

Para cada olhar ou pedido de benção que eu recebo quando estou na rua com meus fios de conta, outros me atravessam enviesados. Eu gostaria de não me sentir ameaçada ao despachar minha porta toda segunda-feira de manhã, mas o síndico – terrivelmente evangélico – faz da nossa vida um inferno e já enviou até um aviso de multa para a fumaça no meu defumador às segundas-feiras.

Ano passado, foram registradas 571 denúncias de violação à liberdade de crença no Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH).  Os números de casos envolvem  violações contra todas as religiões, mas números de 2019 mostram que entre as denúncias identificadas mais da metade dos crimes foram cometidos contra pessoas e comunidades de religião afro. Sendo que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 0,3% da população brasileira se declara integrante de religião de matriz africana. No Rio de Janeiro, em 2020, foram registrados mais de 1,3 mil crimes que podem estar ligados a intolerância religiosa, de acordo com Instituto de Segurança Pública (ISP).

Se você foi vítima de intolerância religiosa, por Exu, denuncie. É nosso direito, dever e fortalece nossa luta.

Aos poucos, estamos retomando o que é nosso, mas as mudanças para além do carnaval ainda são muito modestas e recentes. Que o diga Mãe Meninazinha de Oxum que, ao longo de mais de 20 anos, lidera a luta “Liberte o Nosso Sagrado” e recentemente recuperou mais de 200 peças de religiões de matriz afro-brasileira apreendidas entre os anos de 1889 e 1945 que foram transferidas do Museu da Polícia Civil para o acervo do Museu da República. Na época, até 1945, o Código Penal Brasileiro legitimava a intolerância religiosa e por isso os objetos foram para o museu da polícia. Mil novecentos e quarenta e cinco. Logo ali… É muita luta. 

Tenho orgulho de despachar a rua e cuidar de Exu todos os dias, mas sempre espero o dia que eu vá ter que me virar quando um olhar de curiosidade se transformar em uma mão de violência. Quem faz macumba o ano inteiro sabe. Os traumas nunca cessam e as violências aos nossos e nossas são constantes. 

Meu síndico é fichinha diante da minha infância num bairro terrivelmente evangélico, que tinha mais igrejas que supermercados, padarias e hortifrutis. Minha mãe ia me levar e buscar na escola todos os dias vestida com abadás lindos e torços no cabelo, eu adorava falar das pombagiras e caboclos lá de casa. E sofri bullying e apanhei literalmente dos meninos durante anos por causa disso. Todo dia. Não foi fácil. No trabalho na redação, há quatro anos, eu ainda não podia falar que era de axé porque era tida como alienada ou coisa pior. Só Exu sabe as coisas que ouvi e ainda ouço, que todes nós vivemos, vide a repórter da Band. 

Festa no Candomblé de Pai Rodney de Oxóssi com Camila Silva, colunista do site de CartaCapital.

Mas… Até aqui, muito pouco tempo – 30 anos – cheia de orgulho, Orixá me trouxe. Trouxe mãe Gildásia, cuja morte deu origem ao Dia de Combate à intolerância religiosa, depois de muito sofrer com a violência do racismo religioso. Porque o nome é esse: RACISMO RELIGIOSO. Trouxe minha mãe carnal, uma iyalorixá militante e incansável, Marlene de Onira. E trouxe meu babalorixá, Rodney William de Oxóssi, que me acolhe como num quilombo, me ensina que a luta é diária e me ajuda a caminhar e a entender que a felicidade, esse sorriso de Exu, é um dom ancestral e nosso direito. “Nós não temos culpa”. Mas, não nos esqueçamos: os racistas têm. 

Daqui em diante, com um monte de gente, pelo visto, Exu nos levará a todos brancos e pretos, porque o terreiro acolhe. Mas toque a bateria ou atabaque que tocar, nunca deixemos de entender que o chão do terreiro é também o chão de outros irmãos de axé que ainda não gozam da mesma liberdade que nós. E gozar dessa liberdade diante do racismo tem um preço. 

Que minha mãe Oxum sempre nos inspire a criarmos estratégias possíveis diante da barbárie. Que minha mãe Oyá nos faça bárbaros também diante das atrocidades. Que Xangô esteja sempre ao nosso lado, quando a injustiça e a violência vierem. Que a Constituição se cumpra! Que Oxóssi nos ensine a escolher as batalhas e vencê-las a uma única flecha que temos: nosso axé. 

E que Exu, esse cara que é o maior humano dos orixás, que se fez pop, que venceu o carnaval, esse que não nos abandona nunca, continue pop e nos ajude a ampliar ainda mais o som dos nossos tambores, a nossa voz, a dar visibilidade a todos os nossos orixás – sem perdermos o que é nosso para os outros – a quebrar cada vez mais os tabus, os preconceitos, as discriminações e as pernas dos nossos inimigos racistas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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