Justiça

A explícita mensagem contida na revogação das cotas na pós graduação

No dia 18 de junho de 2020 e acordamos mais uma vez perguntando ‘quem escreveu o roteiro do Brasil?’

O presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub (Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil)
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Nas primeiras horas da manhã, diante de um cenário político assustador, com direito a buscas e apreensões, assim como uma prisão envolvendo pessoas ligadas ao presidente da República, também tomamos ciência de que o Ministro da Educação, Sr. Weintraub , antes de deixar a pasta, revogou a Portaria n. 13, de 11 de maio de 2016, que previa a indução de ações afirmativas para negros, indígenas e pessoas com deficiência na pós graduação das universidades federais.

Um dos objetivos das cotas raciais é promover a naturalização da diversidade, o que é uma das formas de combate ao racismo. Mas para além disso, é importante dizer que as cotas raciais são ações afirmativas amparadas pela Constituição, motivo pelo qual tivemos a oportunidade de assistir o debate amplo do tema através de audiência pública promovida pelo STF, que por sua vez, decidiu, por unanimidade, pela constitucionalidade das medidas de reparação histórica.

Portanto, não estamos aqui falando de favores, mas de direitos.

Não são suficientes as cotas raciais apenas a nível de graduação, inclusive porque o processo de admissão na pós graduação é diferente do processo de admissão na graduação. Quer dizer, o processo de admissão na pós graduação não é impessoal. Assim, se vivemos numa sociedade estruturada no racismo, na discriminação, por mais que se suscite a igualdade de condições, a igualdade de resultados fica comprometida nesse processo.

Existe, assim, uma mensagem bem explícita quando um ato como essa revogação de Portaria acontece exatamente no momento em que estamos vivendo, também, um boom de debates públicos que giram em torno do racismo, e que se deu pela revolta mundial diante do assassinato de George Floyd, nos EUA, que levou centenas de milhares de pessoas antirracistas às ruas de todo o mundo, em plena pandemia.

 

Em plena pandemia, sim,  porque é possível que pessoas que se enxergam diante da possibilidade da morte quando olham para todos os lados e não se sentem em segurança sequer dentro de suas próprias casas, por serem negras, por serem pobres, por serem as indesejáveis do sistema racista e neoliberal que se alimenta da morte, passem a acreditar que não tenham mais nada a perder.

Isso é o que estamos aprendendo com a história, digamos, recente, já que não é uma realidade nova, mas uma realidade que os livros de história e as escolas só passaram a contar de uma forma mais ou menos digna depois do advento da Lei 10.639/03, que prevê a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino.

O que esperar de um país que tentou esconder suas mazelas durante 125 anos, varrendo para debaixo do tapete crimes contra a humanidade como foi o caso da escravidão do povo negro no Brasil, e que quando começou o processo de reparação mínima tem uma elite ressentida que não aceita frequentar os mesmos lugares que pessoas negras? Que se sente incomodada por estar no mesmo avião, na mesma universidade?

O caso do menino João Pedro, assassinado pela polícia do Estado do Rio de Janeiro enquanto vivia o isolamento social dentro de casa, foi “ontem”. Não foi ainda possível terminar de viver esse luto. Mas, como dito, vivemos um momento de atropelos e reatropelos diários, quando não temos sequer tempo de respirar.

Casos Floyd e João Pedro engajam multidões. Foto: Reprodução

Tudo isso acontecendo ao mesmo tempo em que vozes negras estão conseguindo falar, só que mais do que isso, estão conseguindo ser ouvidas, pelo menos de alguma forma, ainda que não na proporção devidamente satisfatória, já que isso se deve ao esforço único e exclusivo de mobilização dessas pessoas, coletivos e organizações da sociedade civil, não contando com políticas públicas eficazes nesse sentido.

E ainda é preciso lembrar que a luta dos negros no Brasil não começou após o assassinato de George Floyd, tampouco após o assassinato do menino Miguel e de todas as crianças que compõem a lista imensa de onde o sangue ainda está escorrendo.

Por isso, é importante pensar sobre o que nos ensina a mestre em ciências sociais e escritora Claudete Alves, quando fala da organização das pessoas negras na década de 30 do século passado e sobre como essa organização foi toda  esmagada por um golpe:

“A Frente Negra Brasileira, fundada em 16 de setembro de 1931, com milhares de filiados estendeu suas ramificações a vários Estados, a saber: Maranhão, Pernambuco, Bahia, Amazonas, Sergipe, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Em 1936, a Frente Negra transformou-se em partido político e teve como órgão oficial “ A Voz da Raça”, que circulou até 1937, quando foi esmagada pelo golpe do Estado Novo. Foi a mais importante entidade negra na primeira metade do século, no campo sócio-político“[2]

Paira no ar a completa desesperança de um futuro possível para pessoas negras num país que só governa para eliminá-las, um país que repete a história, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, como diria Marx. Qual será a “surpresa” do amanhã?

Os retrocessos que vivemos desde 2016 se intensificaram na velocidade da luz, e como nos avisou a filósofa Djamila Ribeiro na ocasião:

“As questões que assolam o país nos últimos tempos revelam um quadro nebuloso e de retrocessos. O impedimento da presidenta e a ilegalidade que o cerca demonstram uma falência ética e moral de nossas instituições. Porém, para além dessas arbitrariedades, os resultados práticos disso afetarão de modo concreto a vida da população, principalmente da de grupos historicamente discriminados. 

Essas ações já sinalizam para um regresso no que tange os direitos das mulheres e da população negra e indígena[3]

Portanto, vejam, enquanto o devir-negro de Achille Mbembe (que pode ser exemplificado através da música Haiti, de Caetano, ou através do conhecido poema Intertexto, de Brecht) não acontece em terras brasilianas, quem são os atuais indesejáveis? Os primeiros da lista de eliminação de direitos, inclusive de viver? Os grupos já historicamente oprimidos, como é o caso de negros, indígenas, pessoas com deficiência, exatamente como estamos assistindo hoje.

Diante de tudo isso que falamos aqui, qual o recado que vem junto com a revogação dessa Portaria?


[1] https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/12052016-PORTARIA-NORMATIVA-13-DE-11-DE-MAIO-DE-2016-E-PORTARIA-N-396-DE-10-DE-MAIO-DE-2016.pdf

[2] ALVES, Claudete. Negros: O Brasil nos deve milhões: 120 anos de uma abolição inacabada. SP: Scortecci, 2008. p. 47

[3] RIBEIRO, Djamila. “Avalanche de retrocessos: uma perspectiva feminista negra sobre o impeachment”. In Por que gritamos golpe?: para entender o impeachment e a crise/ André Singer et. al; organização Ivana Jinkings, Kim Doria, Murilo Cleto; SP: Boitempo, 2016.

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